A CHAVE DA SERENIDADE
Faz bastante tempo, li uma historieta sobre a vida de um sábio que agia de maneira diversa de todo o ser humano comum ao reagir àquelas situações passíveis de nos proporcionarem tristeza ou alegria.
Ninguém compreendia porque aquele homem não dava pulos de alegria quando toda a aldeia celebrava um acontecimento particularmente feliz, ou pulos de raiva quando se amofinavam ou se encolerizavam contra alguma fatalidade que os atingia. Sempre, em qualquer ocasião, sua reação era a mesma: “Ficar feliz por quê?! Ainda não vi a história toda; não sei do seu desfecho. Como festejar por antecipação algo incerto, que não sei se desaguará em benefício ou em desventura?” e, em assim dizendo, prosseguia na sua pacata rotina de camponês.
Isto ficou particularmente visível em dois episódios: no que o seu filho mais velho, e único arrimo no trabalho dos campos, acidentou-se e ficou paralisado, sem previsão possível de cura. A aldeia inteira se ajuntou em torno da sua casa e os mais chegados comentaram: “Mas que desgraça a que aconteceu com o seu filho! O único que lhe vale no trabalho; e você, velho, como dará conta de tudo sozinho, agora?” Ao que o camponês reagiu como de costume: “Desgraça, por quê? Ainda não vi tudo. Não conheço o fim da história. Como me desesperar por um momento apenas, se o todo da situação ainda não apareceu?!”
Novamente desconcertados com a reação usual, os presentes foram se dispersando, desconfiados, muitos frustrados na sua tentativa de testarem até que ponto aquele simples homem se mantinha íntegro naqueles seus princípios incomuns de encarar acontecimentos da vida que, em qualquer mortal, normalmente seriam razão de queixa e de infortúnio absoluto.
Passaram os meses; de repente eclodiu uma guerra entre aquele reino e um dos vizinhos. Todos os rapazes capacitados para a luta foram recrutados para a defesa da sua nação, convocados a comparecerem para cadastro e avaliação. Mas, nas condições em que se achava, o filho do camponês não foi requisitado.
A guerra eclodiu; a maior parte dos homens jovens chamados ao combate pereceu, ocasionando grande desgraça às famílias do país. E, uma vez decorrido aquele tempo, surpreendentemente o filho do camponês, por sua vez, foi readquirindo a saúde, terminando por se recuperar completamente e se tornando válido para reaver o trabalho de sustento daquela pequena família. Ao que, em assombro, a aldeia em peso, de novo, reuniu-se em frente à casinha modesta para manifestar ao camponês a sua perplexidade: “Que sorte você teve, velho! Seu filho foi o único que não morreu na guerra, em toda a aldeia! E, para completar, recuperou a saúde e está outra vez válido para o trabalho! Você é, verdadeiramente, um homem afortunado!”
Ao que o camponês limitou-se a comentar, de dentro da mesma serenidade de sempre: “Afortunado, por quê?! Ainda não vi o fim da história! Agora vocês consideram um prêmio o que antes classificaram de tragédia, mas eu insisto: não sei se é prêmio ou tragédia; não vi o final da história. Só então saberei!”...
É difícil; talvez mesmo inatingível, para muitos de nós, este grau de serenidade, de visão de cima, de onde deveríamos nos posicionar diante dos lances inusitados com que a vida nos colhe. Normalmente nos excedemos em alegria ou em tristeza, perante os acontecimentos que vêm ao nosso encontro no dia-a-dia com a mesma assiduidade das ondas mutantes do mar. Nosso comportamento e reações obedecem a instantes, como se neles se contivesse todo o enredo da nossa trajetória no mundo.
Sentimo-nos absolutamente desgraçados ou abençoados num minuto, esquecendo-nos do dia seguinte que, de maneira inevitável, é um continuum dos eventos do dia anterior; das reações precedentes, das mil e uma maneiras com que lidamos com a multiplicidade de acontecimentos com que deparamos a cada dia, a cada mês, a cada ano de nossa existência.
Que dizer, portanto, do quantitativo das nossas várias vidas? Fica fácil, sob esta ótica, entender melhor as vivências hoje experienciadas, muitas vezes num estado de confusão pela falta de esclarecimento da fonte, do início: daquilo que, obviamente, deu substância àquilo que nos incomoda e que frequentemente julgamos injusto de nos acontecer. Algo nos segreda que a lógica estaria num fundamento; num motivo que gerou outro e em conseqüência outro, até a eclosão do que ora nos colhe de improviso, despreparados interiormente para lidar com acerto com muitas situações difíceis.
A chave para o bem estar nesta questão reside no cultivo da serenidade, bem ilustrada no conto mencionado acima. Não que tenhamos que nos tornar autômatos, sem sangue nas veias, lutando contra estes nossos sentimentos muito humanos; mas devemos aprender a cultivar, também nas emoções, a sobriedade. A maturidade na criança vem, no decorrer do tempo, justamente desta noção de que o par de patins tão sonhado não será necessariamente só fonte de divertimentos e de alegria, mas também, é bem possível, de tombos e de arranhões. O sol cálido que nos enternece nas paisagens paradisíacas do nordeste do Brasil calcina e mata, sob outras condições climáticas e em países diversos. A vida é uma profusão infindável de nuances e de relatividade e a sabedoria vem do desenvolvimento da nossa capacidade de, sabendo reconhecer isso, reagir a propósito não apenas da parte da história que nos colhe num dia, mas da noção exata de que aquele episódio representa apenas um capítulo na nossa história infinita e repleta de altos e baixos, que mais não são do que aparências boas ou ruins passíveis de, no minuto seguinte, se converterem exatamente no seu oposto.
Com amor,