O Ser e o Ter
O Ser e o Ter
Grisalho, quase 60, tendência para a obesidade, tem um carrinho anos 80 e todos os dias ele estaciona o mesmo em certa esquina da Vila Mariana. Do alto do porta malas aberto paira um pequeno baner escrito em vermelho: “Trufas a 1,00”. Conversamos. As trufas são deliciosas. Ele teve uma padaria em Piracicaba. A sobrinha se envolveu com meliantes, que por seu turno metralharam a padaria. Ele teve. Por quase meia hora ele me conta o show dos meliantes, os porquês da sobrinha e os sofisticados equipamentos da padaria. Em momento algum ele se diz padeiro ou confeiteiro. Quem faz as trufas é a mulher. Várias vezes conversamos, eu fazendo hora indo buscar uma amiga num curso, e ele me contando que teve. O metralhamento não aconteceu semana passada, o que poderia validar a necessidade do desabafo. Quando aconteceu? Em 1997. Em mais de uma ocasião tentei indagar sobre a qualidade da farinha, se influi no pão, sobre receitas, salgados, etc. Nenhuma resposta, ou antes, a velha equação: pergunta-se as horas e o interlocutor lhe responde com a temperatura ambiente. No caso dele, os meliantes e os equipamentos. Esse últimos eram jóias da tecnologia. Que ele teve. Não tem mais.
Séneca formulou a seguinte proposição, há muito tempo, cujo prazo de validade ainda não expirou: “O homem, na ânsia de ter, se esqueceu de ser”.
Em 1998, por telefone e por questões de trabalho, fiz uma entrevista com Roberto Shinyashiki. Foi minha obrigação, que culminou como prazer, ter lido “O Sucesso é Ser Feliz”. A entrevista tinha como objetivo frisar alguns pontos que estão no seu livro, e que são, pensando bem, a essência do mesmo. Durante anos Roberto conversou com pacientes terminais e absolutamente nenhum deles, fazendo a amarga retrospectiva de quem está num leito de hospital à espera do último batimento, se queixa de não ter tido um Porsche Carreira Turbo 3.0, um apartamento em Paris, uma fazenda de 10.000 alqueires com lago artificial e campo de golfe. Todas as queixas, sem exceção, transitam por dois pontos: afeto e opções. Deveriam ter amado mais, e perdoado mais. Deveriam ter feito isso, e não aquilo. Nenhuma queixa sobre o que “eu não tive”, em termos materiais.
Em 1996, a Veja publicou uma matéria sobre a quantidade de norte-americanos com um milhão de dólares no caixa. Não me lembro do número, mas pode apostar que era o suficiente para que a Veja se desse ao trabalho de fazer uma matéria a respeito. A era Clinton tinha consciência de que eles eram o maior mercado consumidor do mundo. Desnecessário ser um gênio das finanças para computar que se o maior mercado for pro espaço, os menores terão que sambar o samba de nenhuma nota só. Também na era Clinton deu-se a maior quantia em subsídios, incentivos, empréstimos e doações para os países emergentes. Isso porque em todas as eras, é necessário um mínimo de ter, para ser. Bush e seus asseclas estão fazendo um ótimo trabalho, no campo das trevas. “Transformaram aquilo num deserto, e chamaram de paz”. Um ditado de 2.000 anos, inspirado nos feitos romanos. Um deserto nada tem, e por conseguinte, a triste designação fala por si.
Não sei se cada gringo carece de 1 milhão de dólares para ser alguma coisa.
Sei que as coisas mudam muito quando se tem, mas não se é.
No último ano da faculdade, solteiro e cheio de esperanças, fui almoçar com uma amiga no bairro de Higienópolis, e, na saída, entrei em desespero porque não achava o carro. Momento de pânico, onde eu lamentava: “é a única coisa que eu tenho”. Foi um lapso. O carro estava do outro lado. A amiga era sábia, e disse: “ sossega, tu tens a ti mesmo”. Levei 20 anos para começar a entender essa frase, e talvez leve mais 20 para uma melhor compreensão.
O beatnik Jack Kerouak dizia, se você tem um tapete, você tem coisas demais. Os beatniks não foram longe, mas inspiraram muita gente que foi longe. O movimento hippie é filho deles. O mundo oficial se acostumou a falar mal desse movimento, acho que muito mais por medo, cacoete e falta de raciocínio. Porque acho que já estamos todos fartos de aprendermos as lições da História, sempre fortemente temperadas com sangue e mais sangue. Meio século atrás, meio milhão de hippies se reuniu no dia do solstício e mais três dias. Música, Sexo, LSD e Canabis. A informação a seguir é nota de 1 real pros da minha idade: nem mesmo um único incidente de violência foi registrado. Hoje a tchurma se reúne numa rave, e igual aos hippies, eles não andam com água benta no bolso, mas já se tornou comum, depois de uma rave, os dizeres “saldo de mortos e feridos”. O paralelo é divagante, aliás como todo o artigo, mas tenho certeza que a questão do Ter e do Ser está embutida, e apresenta pesos e medidas diferentes, da época do movimento hippie para o movimento rave.
Logo nos primeiros dias de navegação pelo Amazonas, a expedição Cousteau se depara com uma família em cima do telhado de uma casa, pois estava tudo alagado. O francês ainda iria aprender o quão comum é esse infortúnio naquela região. Um dos tripulantes falava um misto de português e espanhol, e assim conseguiu-se um rápido diálogo com o brasileiro. Ao ser indagado quantos integravam a sua família, ele pensou um pouco e perguntou para a mulher. Ela respondeu: 13. E o brasileiro ainda arrematou: mas perdemos 15 galinhas. Cousteau concluiu: um autêntico camponês. Sabe quantos animais possui, mas não quantos filhos.
Nossa vida por aqui, numa boa hipótese, deve ao menos ter claros os dois parâmetros, e isso deveria ser moeda de 50 centavos para todas as idades, do jardim da infância à terceira. Porém, pouca coisa é clara nessa questão. Afinal, de quanto você precisa para ser feliz? E quantas vezes o dobro do valor estipulado já esteve no meu bolso, e nem por isso fui feliz. Não era, portanto, uma questão de Ter, mas sim de Ser. Agora apareceu um detalhe na alquimia: não é Ser alguma coisa, mas Ser feliz. Esse detalhe pode desviar toda a rota do artigo, ou pode ficar apenas aqui, como uma árvore na paisagem.
Os dados são aleatórios porque essa é uma questão cuja pertinência é quase um quito elemento. Assim como o ar e a água, a terra e o fogo, esse quito elemento existe, embora nem sempre onde se procura.Está mas não está.
Sou um arquiteto, mas vivo infeliz posto que mal remunerado pelos meus projetos. Não sei cozinhar um ovo, mas ganhei sozinho na loteria, e isso é uma estória da carochinha. Fui um super vendedor de imóveis, mas minha mulher me abandonou, pois dizia que eu só falava em dinheiro. Ou minha mulher me abandonou porque eu não tinha dinheiro. Ou não ganhava. Ou ganhava mas torrava tudo no Jockey. E é mais do que óbvio que o exemplo vale para os dois sexos, mas é uma questão difícil, já estou com o lápis atrás da orelha de tanto fazer contas e não cheguei num resultado. Sequer num vislumbre de. O Ser e o Ter. Fica mais complicado porque o item felicidade aparece embutido à todo instante, como um menu pop-up desses de internet, que aparecem do nada dizendo que você ganhou um trilhão, clique agora. Mas clicar agora na felicidade, além de me desviar da proposta inicial, vai uma vez mais consignar a mesma a Ter ou Ser. Nesse ponto talvez esteja na hora de voltar para Sêneca, pois sou adepto da felicidade sem chantagens. Não sei se era o caso dele.
“Lucius Annaeus Seneca, mais conhecido como Séneca, filósofo, nasceu no ano 4 a.C. em Córdova e morreu no ano 65 d.C. em Roma”.
Bom, verdade seja dita, muita gente nasceu nessa época. Depois, desencarnaram. Talvez sem ter tido e muito menos sido. Séneca foi filósofo.
Outra frase desse autor, relativa ao assunto:
“Para a nossa avareza, o muito é pouco; para a nossa necessidade, o pouco é muito”.
“O necessário, somente o necessário...” Lembra dessa canção? Não vejo problema algum em inseri-la aqui, porque o que eu conheço de gente que já cantarolou, e ainda o faz. Está no filme “Mogli”, do Disney. Na cena em que o menino lobo o e urso andam despreocupados pela floresta, comendo frutas e curtindo a natureza. Quase como os hippies. Ou como os índios. Aliás, o mundo oficial, quando quer tergiversar em prosa e verso sobre uma vida mais amena, sem tantas engrenagens, suspira pelos índios. Vejamos nossos amigos pele-vermelha, num exemplo de um parágrafo só. (Poderiam ser dois).
A principal atividade dos Comanches resumia-se nos saques. Os saqueadores saíam em bandos, como pelotões, e a lei da tribo permitia ao líder do bando, nem sempre o chefe da tribo, o produto total dos despojos, desobrigando-o a repartir o que quer que fosse com os demais. Todavia esse mesmo líder cultuava a crença de que quanto maior seu grau de desprendimento, ao ponto de nada reter para si, maior seriam as probabilidades de sucesso em novas investidas. Em suma, os Comanches viam no pecúlio um sinal de fraqueza.
Eles gostavam de ter, e tinham plena convicção de que o caminho mais fácil equivalia a mitológica frase: mãos ao alto(!), mas ao mesmo tempo caderneta de poupança não teria feito sucesso na praia deles. Singularidades do sistemas de crenças dos humanos podem ou não serem ilustrativos.
Henry Ford. Diz a lenda que o então mega empresário, numa reunião com os acionistas, pegou uma folha branca de papel e desenhou um pequeno ponto no meio, daí exclamou: “O ponto sou eu, e o que está em branco é o que irei conquistar.”
Convicção me parece bom. Sou médico. Não para ostentar um diploma ou satisfazer o ideal de meus ancestrais. Mas por principio. Por estar aliado aos que pretendem a cura.
Isso me parece melhor ainda.
Saint-Yves, na obra, A Missão dos Judeus, descreve que entre os povos conquistadas por Roma, havia um que, mesmo desgastado por lutas internas e escravidão secular, não se dava por vencido, porque no seio dele vivia uma grande idéia, inculcada por Moisés: a do Deus Único. E quando se tem uma idéia com tal convicção, seja ela de que ordem for, você passa a Ser. Se você vai ganhar alguma coisa com isso, são outros quinhentos.
A tia do John Lennon afirmava que ele nunca iria ganhar um tostão com aquela guitarra.
Diz a lenda que a Madona chegava no cabeleireiro e falava: dentro em breve serei uma estrela. Testemunhas afirmam que a convicção dela era espantosa.
No filme “O Pianista”, o que se vê, é a convicção de um sujeito que vai literalmente passar por um corredor polonês, já sendo um pianista, para consagrar-se depois disso.
Assim, me soa que o Ser não destoa. E o Ser vem imbuído. Ele singra a vida, os reveses e as bonanças. Quando falta um prato de comida fica difícil, mas não se deixa de Ser. A falta nos coloca no Estar, que é um estado transitório, como o Ter.
A título de curiosidade, parece que o sr. Ford escreveu um livro que demonstrava nenhuma boa intenção para com a comunidade judaica. O ressentimento da comunidade levou-a a comprar, paulatinamente, pequenas indústrias automotivas, que um belo dia, todas reunidas, ganharam o nome de General Motors. Então bateram na porta do pretenso escritor e disseram: reescreva, ou nós o levaremos a falência. Nessa hora, o Ter falou mais alto. Parece que o relógio está cheio dessas horas. Mas o relógio é redondo, e a alternância faz parte do jogo. Ou bem você é, ou bem você tem. Ambas a um só tempo pode-se chamar de conciliação. Cá entre nós, acho que é um jogo bem mais difícil. Eu não diria impossível. Diria não ter ainda descoberto o que requer, para se chegar nesse patamar.
Verdade seja dita, não vamos chegar em lugar nenhum com esse artigo. Se estivesse num jornal, você poderia usá-lo para embrulhar meio quilo de alcatra e estamos conversados.
Terminamos com Sêneca:
“É melhor saber coisas inúteis do que não saber nada”.