A eficácia da Palavra de Deus (Semo 06)

A sabedoria popular diz que não se ama aquilo que não se conhece. Algumas pessoas conhecem assuntos diversos, mas ignoram o conteúdo da Palavra de Deus. Talvez por causa disto ocorra o que o profeta denunciou: “Meu povo se perde por falta de conhecimento” (cf. Os 4,6).

Hoje, o assunto que vamos refletir aponta para a Palavra de Deus. Eu fico chateado quando vejo que essa Palavra perde espaços para as novelas da tevê, para o futebol, para os barzinhos, visitas ao shopping, o repouso e até certas atividades eclesiais como reuniões de “ministros”, conselho paroquial, esta ou aquela pastoral ou do “movimento” A ou B.

Minha experiência de docência bíblica tem me mostrado uma falta de persistência de alguns irmãos, que têm preguiça para o estudo bíblico, onde a maioria acha que não precisa dessa atividade, pois já sabe tudo. A maioria não passa de uma simples palestra de meia-hora no mês de setembro. Quem precisa estudar não comparece, enquanto quem poderia ficar em casa, esses vão diligentemente ao estudo da Palavra de Deus. Lamentavelmente, para muitos de nossos irmãos católicos, o estudo da Bíblia não é visto como uma prioridade. São raríssimas as comunidades que têm um círculo regular de estudo bíblico.

Devemos ser executores da Palavra e não meros ouvintes. Falando a seus amigos, o apóstolo Paulo afirma que “toda a Escritura é inspirada por Deus, e é útil para ensinar, corrigir, refutar e educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, apto para toda a boa obra” (cf. 2Tm 3,16s).

A Missa dominical dedica à reflexão da Palavra um tempo insuficiente. Em geral são quatro textos para refletir em cerca de dez minutos. É muito pouco. É lamentável dizer que dentre os cristãos, de uma forma geral, os católicos são os que menos sabem Bíblia. E quem não conhece tem dificuldade de perfilar-se às suas exigências. Ouvir a Palavra e colocá-la em prática é como construir uma casa sobre o fundamento de uma rocha (cf. Mt 7,24s). Do contrário, o desastre é iminente.

Um homem reclamou que era cristão há mais de vinte anos, e que achava que não devia mais ir à igreja, pois havia escutado cerca de dois mil sermões e homilias, e não recordava de nenhum deles, achando que não só ele, mas também padres, pastores e pregadores haviam perdido seu tempo. Um amigo que escutou o desabafo dissentiu, dizendo que era casado há mais de vinte anos, e que nesse período sua esposa lhe fizera milhares de refeições, cujo cardápio ele não recordava, mas tinha certeza de que, sem aquela comida ele não teria se mantido vivo. Todas as refeições feitas carinhosamente pela esposa o haviam nutrido e dado a força que ele precisava para viver.

Na Igreja a palavra de Deus alimenta nossa fome espiritual e dá força à nossa fé. Hoje eu estaria morto espiritualmente se não fosse ela. A fé vê o invisível, espera o impossível e recebe o inacreditável. A eficácia da Palavra está no fato de ser como a chuva; ela nunca deixa de cumprir sua missão.

É indiscutível que a leitura bíblia serve para a edificação espiritual de quem lê. Exceto quem busque somente o lado científico, a leitura das Sagradas Escrituras proporciona ao crente que lê, um reforço na fé, um sustento em sua caminhada e um rumo para a vida. A leitura bíblia é, por todos os títulos, edificante. Lemos, portanto, para escutar o que Deus tem a nos dizer, para buscar lenitivo, solução e cura na hora amarga, e também como preparação para as tarefas de apostolado, profecia e serviço comunitário. Não se admite um crente que não esteja familiarizado com a Palavra.

À questão que muitos fazem: “quando ler a Bíblia?” A resposta é simples: leia sempre! Ler a Palavra de Deus é como alimentar-se. Quando comemos? Todos os dias, regularmente, quando temos fome. De fato, em qualquer momento do dia, ao amanhecer, nas horas de repouso e lazer, nos momentos de espera, na hora de dormir, sempre é tempo de uma leitura das Sagradas Escrituras. Conheço cristãos que, para não perderem “horas vagas” com outras coisas que não a Palavra, têm Bíblia ou Novo Testamento, na gaveta do trabalho, no porta-luvas do carro ou na bolsa.

A segunda pergunta, “como ler a Bíblia?” comporta uma resposta mais complexa. Primeiro, é salutar, antes de ler os Textos Sagrados, orar a Deus, ao Espírito Santo, pedindo luzes, unção, enfim, transformando o mero ato de ler em um momento de oração. Tem gente que, sob a desculpa de que a Bíblia é um livro complicado, não lê, não medita, não vive.

As Sagradas Escrituras têm livros que, por sua peculiaridade de antigos, históricos ou simbólicos, impõem maiores dificuldades aos leitores. Assim – e eu sempre digo isto nos cursos que assessoro por aí – quem se aventurar a ler a Bíblia a partir das primeiras páginas (Livro do Gênese), vai desistir lá pelas folhas 20, tamanha a complexidade que aquela leitura, árida para quem ali penetra, sem experiência ou acompanhamento, proporciona.

Desta forma, respeitando outras orientações, recomendo – podem anotar aí – com fins pedagógicos e didáticos, que a leitura se processe mais ou menos na seguinte ordem: Mc, Mt, 2Cor, Jd, Tg, Lc, At (1-14), S1,1-2Ts,Fm, Sb, Pv, G1, F1, 1-2Tm, 1Cor, Ef, At (15-28), Cl, Am, Zc, Is (1=39), Rm, 1-2Pd, 2Jo, Rm, Est, Jdt, Rt, Jo.

Assim como há alguma fórmula de ler, também relacionamos uma “como não ler?”, para ajudar os estudantes. Primeiro, como já foi dito, não ler “pela ordem”; depois, nunca ler com o espírito de emulação, ler para saber mais que os outros; também não ler em circunstâncias que possa ocorrer distração e/ou dispersão. Por último, pelo menos no início, jamais ler querendo “interpretar”. O correto é ler e do texto lido “tirar uma mensagem” para o aqui-agora. É salutar que vocês busquem uma leitura de conotação mística, como se Deus estivesse falando ao nosso coração.

Alguém já disse que a Bíblia é uma “carta de amor de Deus à humanidade”. Sendo assim, nela o Pai nos fala direto ao coração e à inteligência. Por esta razão, vemos que ele nos fala através de três canais:

1. pela tradição

2. pela Bíblia e

3. pelos sinais dos tempos.

Essas três fontes alimentam uma outra, chamada de “magistério da Igreja”, que interpreta as demais, tornando sua linguagem acessível aos fiéis e crentes. É preciso estar sempre atento à comunicação que o Criador quer manter conosco. É interessante a constatação a respeito do amor de Deus pela humanidade. Ele nos amou de tal modo que se encarnou, se fez Filho, morreu para dar vida (cf. Jo 3,16).

Assim como seria uma desatenção alguém receber uma carta de amor, da namorada, do esposo, de um filho, do pai, e não lê-la, fazer pouco caso, deixá-la de lado, como algo sem valor. O remetente certamente ficaria magoado, ao ver seu amor não correspondido. Assim é Deus, quando nos dedicamos a outros estudos e outras leituras e nos furtamos a ler a sua Palavra, a Carta de Amor, atualíssima, que ele nos enviou e ainda manda todos os dias, quando lemos a Escritura e a natureza.

Há várias maneiras de se ler a Bíblia. Estas, aqui relacionadas são apenas algumas, existem outras, e que se pode criar de acordo com a exigência da situação. Para uma melhor fixação, julgo interessante, dividir em dois blocos: o religioso e o científico. Cada um deles comporta várias subdivisões. O religioso (que deve ser o primeiro modo a ser procurado) se subdivide em místico, orante, litúrgico, pastoral, profético, etc. No modo científico de leitura vamos encontrar o cultural (histórico, geográfico, social e antropológico), comparado, crítico, interpretativo, etc. Vamos ver cada um deles?

1. Religioso

a) místico

trata-se da forma mais simples, de ler a Bíblia; a pessoa lê

um trecho e “tira uma mensagem”, pessoal, atual e dinâmica;

é possível que em um grupo de dez pessoas, cada uma faça

uma leitura mística diferente, de acordo com sua caminhada,

e como o Espírito a inspira; a leitura mística tem uma

conotação pessoal, já disse, e como tal dever ser

respeitada; é o modo recomendado para todos,

especialmente para quem está iniciando uma caminhada;

b) orante

é um jeito bem místico de ler as Escrituras, no modelo

monges da Antigüidade, grandes mestres da oração;

c) litúrgico

considerando-se a liturgia como um serviço a Deus e à

comunidade, a leitura litúrgica deve revestir-se do caráter

celebrativo das liturgias, com espiritualidade, profundidade e

clima de ágape;

d) pastoral

é o modo de leitura adequado para trabalhar com o público,

seja em homilias, pregações de retiros, catequese, etc.;

sempre se aplica a Palavra a um fato concreto da vida do

povo;

e) profético

o jeito profético de ler e entender as Sagradas Escrituras

tem uma conotação eminentemente sócio-fraterno, onde

aquele que lê, interpreta e aplica o que leu no bem-estar da

comunidade; pode ser uma ampliação da leitura pastoral;

considerando-se que a missão profética do cristão consta de

anúncio, denúncia e animação, essa leitura deve vir

revestida dessas características;

2. Científico

O modo de leitura científica da Bíblia, tanto pode ser exercitado pelo místico, que visa aprofundar seus conhecimentos e assim fortalecer sua fé, como também pelo ateu, com fins meramente especulativos e mesmo de contestação.

a) cultural

o modelo cultural se subdivide em vários itens: histórico, geográfico, social e antropológico:

• histórico

é importante conhecer a história do Oriente Médio, da Palestina como um todo e especialmente de Israel, para entender costumes e movimentos sociopolíticos das diversas épocas abrangidas pelas narrativas;

• geográfico

igualmente ao histórico, o conhecimento da geografia dos lugares onde se desenrolam os fatos, é de extrema utilidade para uma melhor compreensão dos textos;

• social

a forma como os povos se relacionavam e organizavam em sociedade, fornece uma visão sociológica, indispensável à análise científica das realidades em pesquisa;

• antropológico

por fim, o aspecto antropológico, do homem palestino, sua adaptação à terra e à região, sua forma de habitação e constituição social, dá uma ponderável panorâmica a quem pretende um estudo mais aprofundado;

b) comparado

o chamado “estudo comparado” visa, como diz o nome, uma comparação, um cotejo entre dois ou mais textos, de épocas ou espaços diferentes, capaz de servir de instrumental à pesquisa:

A leitura comparada pode ser estabelecida entre vários textos, por exemplo entre os paralelos nas parábolas de Jesus; no magnificat de Maria (Lc 1,46-56) e o canto de Ana (1Sm 2, 1-10); entre as bem-aventuranças de Mateus (5,2-12) e de Lucas (6,20-26). É possível também comparar, lado a lado, as cartas às Igrejas cristãs que encontramos no livro do Apocalipse.

É preciso que nossa atitude de busca/estudo da Bíblia seja como a de alguém que anda a procura da luz. No fundo, a fé do povo na Bíblia não é a fé num livro, como o que fazem alguns, de forma fundamentalista, mas é a fé em Alguém que fala, desde o início, através do livro. A luz da busca constante não pode apagar, pois apagada deixa de iluminar a caminhada do povo, tão sedento de boas notícias. É por isso que se deve fazer nas Paróquias, comunidades e casas de formação, cursos de Bíblia, pois quando se mantém “círculos bíblicos”, cultiva-se a Palavra, para que o Espírito Santo possa ter vez, esclarecer o sentido e revelar o que Deus fala. Vocês têm cursos de Bíblia em suas comunidades? A Bíblia é uma luz que não é privilégio de alguns peritos, mais sabidos ou tidos como hierarquicamente superiores, mas um dom de Deus, concedido à comunidade e, através dela, às pessoas que dela fazem parte.

Na Bíblia podemos encontrar, de modo claro, a afirmação, a forma e a prova do quanto ele nos ama. Basta ver. Esta forma de viver implica sempre em questões de fé. É curioso como hoje, apesar de tantas teorias, correntes de pensamento e modismos filosóficos, o ser humano padeça tanto de falta de fé, sofrendo e angustiado, buscando alguma coisa em que acreditar. Para aumentar a fé, o cristão tem dois instrumentos eficazes: a oração e a leitura bíblica.

Há diversos tipos de fé. Uma é a fé “natural”, capacidade inata a qualquer ser humano de agir acreditando em algo que não se tem a totalidade do conhecimento. Sem essa fé natural a vida em sociedade seria impossível. Essa, ainda é uma fé incipiente. Há uma fé “religiosa”, que pode ser canalizada erroneamente: a fé mágica, a fé supersticiosa, a fé idolátrica. Hoje em dia muitas filosofias apregoam a fé em si mesmo ou, até, a “fé na fé”. Muitos gurus por aí bradam que “o importante é ter fé”. Será?

Há uma fé diferente, “salvífica”, resultado da ação do Espírito Santo no coração daquele que crê. Aí se manifesta a fé como milagre. A fé como resposta à graça. A fé que abre os olhos, os corações e as mentes. Essa fé abre as portas da vida eterna. Uma fé assim, diferente e que faz diferença, acontece somente e exclusivamente quando a depositamos no objeto correto: em Deus, nosso Pai rico em misericórdia e em Nosso Senhor Jesus Cristo. A fé, alimentada pela Palavra nos leva a crer no Deus que ressuscitou a Cristo, e no Cristo que foi entregue por nossos pecados e ressuscitado para nossa justificação, como nos ensina São Paulo.

É importante também a fé no Espírito Santo, que fundou e preside a Igreja. Aquele que tem a fé fraca deve pedi-la ao Pai mais abundantemente, e Ele nos concederá: “Creio, Senhor, mas aumenta minha fé!”. O que tem a fé outrora vigorosa, mas hoje enfraquecida, peça ao Pai e ele há de restaurá-la. Todos crescemos na fé, na diligente alimentação espiritual da Palavra e dos Sacramentos. Que nunca, portanto, nos descuidemos de alimentar corretamente a nossa fé, mas sempre centrá-la em seu autor e consumador: Jesus Cristo, aquele-que-é, que-era e que-vem. Quem persiste no conhecimento e na prática da Palavra de Deus, esse descobre em sua vida a eficácia da graça e o poder dos dons do Todo-poderoso.

Para uma razoável interpretação da Palavra de Deus, é importante conhecer os “gêneros literários” existentes nas Escrituras, bem como culturas, épocas e línguas. Para um eficaz estudo da Bíblia, ou seja, ouvir e colocar em prática, é preciso uma leitura mística, crítica, profética, pastoral, histórica e sociológica, levando ainda em conta, aspectos políticos e antropológicos da narrativa.

Se a pessoa apenas lê, aprende uns 30%, e em alguns casos, de forma fundamentalista. Se o texto lhe é ensinado, o percentual já sobe para uns 70%. Se for assessorado por leituras complementares, talvez vá a 85%. O resto é respaldado pela oração, pela reflexão e pela meditação, naquilo que os místicos do século XIII chamaram de “leitura orante da Bíblia”.

Caso contrário, pode derivar para o prejudicial fundamentalismo, que é ler um texto sagrado e, por falta de um apoio, buscar interpretá-lo ao pé da letra, sem conhecimentos, na base do “achismo”: eu acho assim, acho assado... Outra falha é a leitura eminentemente mística: “que mensagem eu tiro aqui?” Isso é bom, como começo, mas há que ir adiante e explorar trilhas tão fecundas. A Bíblia não é um livro pronto, mas uma coletânea de escritos dinâmicos que, a cada época e sob determinados prismas, dá novas pistas e suscita novos entendimentos.

Ao criar a leitura orante, os dominicanos fizeram uma importante comparação. Primeiro ler (levar à boca); reler (mastigar, ruminar); decorar (ingerir e digerir) e responder (pôr em prática na vida, assimilar). “Assim, pois, com a leitura e o estudos dos Livros Sagrados, se propague e seja estimada a Palavra do Senhor” (Vaticano II, DV 26; 2Ts 3,1). O livrinho é doce ao contato com a boca, mas amargo no estômago, pelo compromisso que enseja. Ou conhecemos de fato a Palavra, para vivê-la e evangelizar, ou ficaremos apenas nos festejos de setembro. Não esqueçam o que disse São Jerônimo:

“Ignorar as Escrituras é ignorar ao próprio Cristo”

Excerto da Meditação/curso ministrada a grupos da Renovação Carismática, em Três Lagoas (MS) em 2001.

Autor do livro “Introdução ao Estudo da Bíblia”, Ed. Kerygma, 2007.