Escolha o seu (título)
Tola e vã mania humana em se apossar e fazer-se dono de algo que não lhe pertence. Não por uma maldade latente, mas por uma presunção de posse que, parece, nasceu com cada um, mas que faz mal, incomoda, aflige. Esse sentimento não se restringe a essa ou aquela pessoa, a esse ou aquele grupo ou nação. Está incrustado em cada um. Esse alerta me ocorreu da maneira mais inusitada e que me fez ficar confuso e intrigado. Por que surgiu assim, em plena madrugada, e madrugada fria, nada favorável a que me levantasse para escrever antes que a sensação se perdesse junto com a memória do sonho. Fiz de tudo para ficar quietinho embaixo do edredon mas alguma coisa mais forte me cutucava e, quanto mais cutucava menos eu queria levantar, até que uma tosse incontrolável me obrigou a isso. Enfim, já que estava de pé peguei lápis e caderno e comecei a rascunhar. Mais estranho ainda é o fato de tudo ter começado num sonho em que eu caminhava por uma rua do bairro em que morava na infância e onde não vou a vários anos. Era madrugada agradável, como costumam ser as madrugadas do Rio de Janeiro, ou antes, como costumavam ser. Sim, porque o agradável não se refere somente ao clima mas à sensação de segurança, de poder caminhar sem ter que estar em guarda todo o tempo. Bem, era assim que eu estava no sonho, à vontade, despreocupado e em segurança. Foi quando a intuição me avisou que havia alguém atrás de mim. Continuei caminhando no mesmo ritmo e virando levemente a cabeça para um lado e outro, facilitando a visão periférica. E a visão periférica não viu nada. Até porque, com a minha miopia, haja visão periférica. Parei e me virei devagar para encarar quem me seguia. No princípio não vi ninguém, até que olhei para baixo e percebi que a minha sombra era um cãozinho, filhote de um labrador. Esperei que ele se aproximasse mas ele parou também e ficou me olhando, sem medo aparente, mas sem se chegar. Sentei na beira da calçada e chamei baixinho. E ele veio lentamente se chegando. Comecei a acariciá-lo para diluir qualquer receio que, claro, ele deveria estar tendo. Estávamos ali, os dois, na calçada quando, de repente, não mais que de repente como todo sonho que se preza, a cena já era outra. O cãozinho já estava numa moldura, num retrato junto com meu filho. Foi exatamente aí que acordei e me dei conta de que não perguntei ao cãozinho se ele estava perdido, se desejava vir comigo, se tinha casa ou se estava só passeando pela rua, como eu. Foi aí que me senti um ladrão. Roubei o passeio de um cãozinho, roubei um cãozinho de seus donos, roubei uma liberdade e roubei uma vida. Gente. É muito louco tudo isso, mas há que se pensar. Alguns poderão dizer que foi um instinto de proteção que me fez pegar o cão e levá-lo para minha casa. Mas é exatamente isso. Agimos tantas vezes por puro instinto, roubando coisas das pessoas. Roubamos sentimentos, bem-estar, roubamos o sossego. Tentamos até roubar a loucura alheia porque rotulamos louco aquele que não se nos assemelha em atos e pensamentos. Consciência incomodada, despertar, insanidade? não sei.