big brother brasil: nova forma de exercer ou oferecer cidadania?
Uma grande reflexão está surgindo sobre a persistência, no ar, do programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, além daquela sobre laboratórios humanos e controle social: espaço onde o cidadão possa exercer a cidadania ou absorver atitudes cidadãs de pessoas comuns como eles. Pensamos os reality shows um "não-lugar", onde os receptores têm o maior contato com a mídia, e em particular a TV, por meio desses novos formatos, que desenvolvem à sua maneira, como Fausto Neto (2001) analisa, uma "construída" estratégia de cidadania midiática, mediante a qual o mundo da vida se faz presente.
De acordo com Canclini (1995, p. 29), junto com a degradação da política e a descrença em suas instituições, outros modos de participação se fortalecem. Com que olhos os receptores vêem o Big Brother Brasil e os personagens que nele estão inseridos e o que absorvem deles? Canclini afirma que a coesão das culturas nacionais e urbanas foi gerada e sustentada, em parte, graças ao fato de as artes cultas e populares proporcionarem iconografias particulares como expressão de identidades locais. Pensamos ser isso que é reunido dentro do programa.
Na tentativa de referendar esta discussão, este artigo vem instigar ainda mais uma proposta de estudo. Temos como referência epistemológica as definidas por Peter Burke, Néstor García Canclini e Jesús Martín Barbero, as quais inspiram a reflexão sobre a produção social do sentido (de um lado) e as relações entre comunicação e cultura, preocupações básicas, que quer pensar os sistemas e processos de comunicação à luz de uma teoria social, a qual dê conta das imbricadas relações entre micro e macro social, entre estruturas e agentes, entre campos de produção cultural e práticas cotidianas, dentre outras questões que emergem disso.
Essas reflexões são resultados do trabalho desenvolvido com financiamento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), quota 2002/2003, da Universidade Estadual da Paraíba/CNPq, cuja questão central de análise referia-se à construção da estrutura panóptica do programa Big Brother Brasil em sua segunda edição.
O tema reality shows, desde o surgimento da Casa dos Artistas no final de 2001, propiciou muita reflexão, entre especialistas e leigos, a respeito de quais seriam os caminhos da televisão, em especial, dos consumidores deste tipo de programa e de qual tipo de relação poderia existir entre os receptores e o Big Brother Brasil ou outros programas do gênero.
Entendemos que a sociedade contemporânea caracteriza-se pela mediação da comunicação à distância, que interfere estruturalmente nas relações intersubjetivas e intragrupais, modificando as formas de percepção, inteligibilidade e representação da realidade.
Castells (1999, p. 350) já punha em questão se a privacidade estaria mesmo exposta aos maiores perigos na história da humanidade, devido à natureza invasiva das novas tecnologias de comunicação. Segundo o autor, a crescente ameaça à privacidade preocupa menos o Estado propriamente dito do que as organizações empresariais e as redes privadas de informação, ou os aparatos burocráticos que seguem uma lógica própria, em vez de atuar em prol do governo. "Ao invés de um controle centralizado, há uma vigilância descentralizada".
As sociedades, desde o século XVIII, com a idealização do modelo arquitetônico panóptico de Jeremy Bentham (1748 - 1832) e todo o furor da Ilustração com o seu ideal de visibilidade universal (Rouanet, 1998), caracterizam-se como sendo panópticas, visto que o modelo pôde ser ampliado às demais instituições sociais.
A propaganda desses mecanismos, gradualmente, fez surgir um novo tipo de "sociedade disciplinar" (Foucault, 1977) em que a visibilidade de poucos diante de muitos foi substituída pela visibilidade de muitos diante de poucos, e na qual a manifestação "espetacular" do poder soberano foi substituída pelo poder do olhar.
Foucault usa uma imagem incisiva para caracterizar essa nova relação entre o poder e a visibilidade: o panopticon. Uma máquina universal de organização das relações de poder na vida cotidiana e destinado a preservar as prerrogativas da lei e da ordem. Para Machado, o panóptico é, antes de tudo, uma escola de virtudes, onde personagens odiosos encenam diariamente o drama da punição. Como tal, ele deve ser aberto à visitação pública, deve ser um local de instrução, um teatro educativo para onde os pais levam em passeio seus filhos, considerados criminosos potenciais.
Como nos presídios do século XVIII, o Big Brother carrega essa magnitude de um "local" aberto à visitação pública, um local de instrução, um teatro educativo para onde os receptores levam em passeio seu imaginário. Contemporaneamente, como pensa Deleuze (1993), os indivíduos estão submetidos a vários tipos de controle. E esse controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado.
Canclini afirma que a transnacionalização das tecnologias e da comercialização de bens culturais diminuiu a importância dos referenciais tradicionais de identidade. Quando a circulação cada vez mais livre e freqüente de pessoas, capitais e mensagens nos relaciona cotidianamente com muitas culturas, nossa identidade já não pode ser definida pela associação exclusiva a uma comunidade nacional.
Como afirma o autor, hoje a identidade, mesmo em amplos setores populares, é poliglota, multiétnica, migrante, feita com elementos mesclados de várias culturas. Essa transnacionalização econômica e o caráter específico das últimas tecnologias de comunicação, como ele propõe, colocam no papel principal as culturas-mundo exibidas como espetáculo multimídia. Os múltiplos sistemas de canais de venda, estruturados transnacionalmente, fazem que as mensagens que circulam por eles se "desfolclorizem".
Enfatiza: "as identidades nacionais e locais só podem persistir na medida em que as situemos numa comunicação multicontextual. Ao se tornar um relato que reconstruímos incessantemente, que reconstruímos com os outros, a identidade torna-se também uma co-produção. Esse processo de globalização cultural e integração econômica regional mostra a necessidade de as economias e as culturas nacionais enfraquecerem as fronteiras que as separam".
Completa: "uma teoria das identidades e da cidadania deve levar em conta os modos diversos com que essas se recompõem nos desiguais circuitos de produção, comunicação e apropriação da cultura. A identidade é uma construção, mas o relato artístico, folclórico e comunicacional que a constitui se realiza e se transforma em relação a condições sócio-históricas não redutíveis à encenação. A identidade é teatro e é política, é representação e ação".
Todos esses argumentos nos levam a acreditar que realmente há uma articulação entre o exercício da cidadania e o programa. Mesmo que esse não tenha sido o verdadeiro objetivo dos produtores quando o "localizou" no Brasil. Isso é uma prova do que disse Foucault: a visibilidade de muitos diante de poucos. De certo modo há também a vigilância da sociedade sobre os meios de comunicação, mas também um certo reaproveitamento de espaço na mídia, mesmo que esse espaço "aberto" cobre o alto custo do banimento da intimidade dos participantes e a exploração de seus corpos e mentes.
Flaviano Quaresma é formado pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Atualmente está estudando a relação entre cidadania, recepção e o programa Big Brother Brasil sem vínculo com instituições.
Referências
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRL, 1995.
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. (A Era da informação: economia, sociedade e cultura; V. 2)
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Vozes, 1993.
FAUSTO NETO, Antônio. Desmontagens de Sentidos: leituras de discursos midiáticos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1977.
MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Editora da USP, 1993.
MARTÍN-BARBERO, José. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2001.
ROUANET, Sérgio Paulo. O Olhar Iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.