SERMO 05 - O mistério da cruz

Hoje, conforme havíamos falado ontem à noite, vamos fazer uma meditação a respeito da cruz de Cristo. Geralmente, quando se anda por aí, em contato com o povo, diversas questões sobre Doutrina, Bíblia e Teologia costumam ser levantadas. Num desses encontros, uma pessoa me perguntou: “Onde e na pele de quem Jesus é hoje é traído, rejeitado, vitimado por violência de toda ordem, injustamente condenado?”. Jesus é traído onde o plano do Pai é pervertido pelo egoísmo e pelo desleixo à dignidade do ser humano.

Jesus é condenado todas as vezes que deixamos de alimentar quem tem fome, de vestir os nus e postular a defesa dos que sofrem injustiças. Nosso modelo de sociedade ocidental, capitalista-liberal, consumista e mercantilista formou um modelo nitidamente excludente. Aí o deus é o mercado, a capacidade de comprar e vender. Quem é despojado de bens e recursos, não pode aproximar-se do mercado. Ora, na visão desse segmento, quem não compra deve ser excluído, uma vez que o mercado tornou-se a única forma de vida.

É por esta razão que nossa sociedade elitista vira as costas aos despojados, já que eles nada têm a oferecer – em termos econômicos – ao modelo de consumo e produção ora em vigência. Nós crucificamos Jesus cada vez que um irmão nosso tomba, derrubado pela ganância, pela falta de sensibilidade social, pela indiferença.

De outra feita, indagaram: “Onde e na pele de quem Jesus é aplaudido um dia, levando tapinhas nas costas (claro, com interesses imediatistas e egoístas), e, no dia seguinte, rejeitado só porque não correspondeu às expectativas de algum grupo?”. Os sistemas de exploração, acumulação injusta e indiferença mantêm vivos e atuantes alguns esquemas de defesa e sustentação, representados por alguns segmentos de políticos, empresários e profissionais que fazem os pactos mais sinistros visando a acumulação e a perenização no poder.

Não podemos esquecer nesse meio aquele tipo de mídia que rejeita o pleito dos humildes, condena os movimentos de organização popular, e faz o jogo dos governos e dos poderosos. Muitos se dizem cristãos para manter uma fachada de credibilidade (tapinhas nas costas) mas logo depois revelam a rapina que existe em seus projetos e seus corações.

É o caso de muitos que saem de uma atividade religiosa, às vezes de um retiro como este, encontro ou coisa parecida, confessando-se “convertidos”, e no dia seguinte voltam a refocilar-se na mesma lama das faltas da semana anterior. Ao invés de “criados à imagem de Deus”, muitos querem um Deus criado à imagem de seus projetos, nem sempre éticos, nem sempre solidários.

Alguns falam em Jesus, mas não o testemunham em seus atos do dia-a-dia. Essa incoerência se encontra em todos os segmentos do cristianismo. Ninguém está imune a ela. Nós somos – como disse um velho prelado espanhol – sempre um argumento, a favor ou contra Cristo. A morte de Jesus na cruz fez brotar uma vida nova e abundante para todos. O mistério da cruz, embora rico em pistas para reflexão, torna-se incompreensível na medida em que nos distanciamos de uma visão essencialmente mística, iluminada com a luz da fé. A cruz é, como nos ensina São Paulo, para os judeus um escândalo, e para os pagãos loucura, mas para nós motivo de salvação.

Mais do que um ritual de condenação, a cruz traz consigo um mistério, do sofrimento, da humilhação e da morte de um Deus, que fez tudo isto, aceitou uma aparente desonra para nos salvar, nos redimir e nos libertar.

Sobre o mistério da cruz existem diversos estágios de entendimento que vale a pena analisar e até anotar:

a) o comum, que é a análise dos fatos como eles vêm narrados

nos evangelhos;

b) o histórico, que é o estudo da crucifixão, da maneira como é

contada em antigos manuscritos romanos, isto é, como uma

medida preventiva da pax romana e de seus sistema judiciário;

c) o exegético-salvífico que parte das expressões “abrir os céus”

e “descer aos infernos”, para sintetizar a aliança definitiva após

a cruz, como marco fundamental da salvação. É possível

descobrir-se, nesta fase, ligações com o mistério pascal, com o

êxodo, com a síntese do evangelho (cf. Jo 3, 16) e a vida da fé;

e, por último,

d) o axiológico-mnemônico, por recordar o êxodo do Egito, tem

no gesto libertador do pecado e da morte, seu ponto alto.

É comum se ver, especialmente entre os povos de origem latina, um exagerado culto à morte, muitas vezes superior até a idéia da ressurreição. A adoração ao “Senhor morto” em certas ocasiões parece suplantar as celebrações em honra ao Ressuscitado. O culto à morte de Jesus na cruz traz consigo um mistério e, ao mesmo tempo, uma revelação. Trata-se da lembrança do sacrifício voluntário de Cristo, para interposição de novos valores (ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida por seus amigos...) às formulações da história da vida do homem. Tudo revela um gesto de serviço à vida abundante que ele veio trazer.

Por não se deixar enquadrar em nada, a cruz é a morte de todos os sistemas. A cruz é o ódio destruído pelo amor que assume a cruz-ódio. Por isso liberta. Longe de significar a derrota que abateu os discípulos na primeira hora, a cruz reflete a vitória libertadora de Cristo sobre todas as estruturas. Ela mostra o fracasso do poder militar dos romanos, a queda do poder religioso dos fariseus, a caducidade da sabedoria dos filósofos.

Resta apenas uma sabedoria: a da cruz. Ora, se a libertação vem da cruz, é preciso que aquele que quer se libertar viva integralmente este mistério em sua vida. Jesus, obediente até a morte (e morte de cruz!), é o arquétipo do homem novo, liberto e salvo, quando o filho de Deus torna-se o odós (o caminho) que conduz a humanidade ao Reino dos céus. A cruz, por conta do gesto solidário de Jesus para com a humanidade, dá pistas para a libertação integral do ser humano, apontando para cima e para os lados: espiritualidade e solidariedade. Por isso, nos dias de hoje, viver a mística da cruz, continua sendo um escândalo e sobretudo um desafio. Na cruz, a morte torna-se vida, destrói o egoísmo e o pecado, e conduz o povo liberto à ressurreição.

Hoje em dia parece que as pessoas têm medo da cruz. Há alguns dias, ouvi uma senhora dizer que não gostava da cruz porque era um sinal muito tétrico. Preferia a cruz sem Cristo, apenas as duas traves de madeira, como as dos protestantes. De outra feita, na casa de uma família pude ver uma bela imagem de Cristo-rei de braços abertos. Só que as chagas das mãos foram cobertas com gesso e pintadas. Disseram que as chagas eram muito tristes. Tememos a cruz porque temos medo do compromisso que dela dimana. Jesus pagou nela uma culpa que era nossa. Santa Teresa de Jesus diz que os cristãos preferem mais os prazeres que as cruzes. Esquecem-se que a redenção vem pela cruz.

De outro lado, os “sinais da ressurreição” se tornam claros na caminhada do povo de Deus, que se organiza para render culto a Jesus, um culto em “espírito e verdade”, na simplicidade dos que buscam a Deus enquanto ele ainda se deixa encontrar, na devoção dos que celebram para agradecer os dons e para buscar o ser-Igreja, para enraizar a fé e o respeito à vida.

A ressurreição está presente onde há perdão, unidade, acolhida, solidariedade, misericórdia e conversão. Trata-se do caminhar na direção da casa do Pai, unidos como irmãos, iluminados pelo Espírito Santo.

As diversas atividades promocionais da Igreja, como as “campanhas da fraternidade”, por exemplo, privilegiam a cada ano, um estudo social, político e religioso sobre diversos assuntos de interesse religioso e sociopolítico. Uma das grandes preocupações mundiais se volta para a Amazônia. Ali vem enfatizada a necessidade de uma atitude em favor do meio-ambiente, e também com as populações daquela região, um povo esquecido e discriminado. Cuidar da natureza também é ser zelador do projeto de Deus.

O poder público, o extrativismo da madeira e das demais riquezas da Amazônia, o coronelismo e a grilagem que por lá se verifica, isto somado à insalubridade ocorrente naquela biodiversidade, bem como a carência de recursos, escolas, estradas, hospitais, tudo contribui para um quadro de extrema pobreza e marginalização, revelando um povo sofrido, excluído, crucificado. Os poderosos voltam seus olhos para as riquezas, mas desprezam a população da região. Onde o povo sofre e a natureza é degradada, os sinais da ressurreição se mostram tênues, dando, lugar a uma cultura de morte, escravidão e cruz.

Jeremias foi um profeta, como tantos outros, que sofreu ameaças, agressões, prisão e até morte, porque suas denúncias “incomodavam” os que praticavam o mal ou queriam manter suas duvidosas posições de autoridade, civil ou religiosa. Igualmente os primeiros cristãos preferiam ser mortos a abandonar sua fé. Hoje, talvez não haja o perigo de sermos condenados à morte, como faziam antigamente, mas a perseguição perdura e nos é pedida, cada vez mais, a firmeza da fé. Mesmo atordoado pela tragédia do exílio babilônico, Jeremias adquire a certeza de quem o Senhor o acompanha sempre, orando para que aqueles que confiam em Deus não se decepcionem (cf. Jr 20, 10-13).

Não era fácil na Antigüidade, como não é hoje, ser profeta, levantar a voz e denunciar a injustiça, o abuso do poder econômico e mostrar que as coisas não vão bem. O número dos que aderem aos projetos de morte é maior que o dos que deles discordam. A verdade e os direitos humanos, no entanto, somente serão respeitados quando surgirem pessoas como Jeremias, e quando o opressor tiver medo de sua coragem e de suas denúncias. A economia da cruz pede a nós uma permanente atitude profética. Todo batizado é chamado a ser profeta e missionário.

Os que condenaram a Jesus, e a denúncia é de São Paulo (cf. Rm 5,12-15), procederam como os que perseguiram os profetas, opondo-se à verdade. Deus, em sua sabedoria, utilizou-os como instrumento de sua glória, porque transformou a morte de Cristo em vitória e fonte de salvação e regeneração para toda a humanidade. Em seu discurso sobre a vocação cristã (cf. Mt 10, 26-33), Jesus nos revela a necessidade de sermos corajosos, pois segui-lo pode implicar em igual sorte à que ele teve. Hoje não matam, mas boicotam, tiram espaços, fazem pressões para calar certas vozes proféticas.

Testemunhar a fé em Cristo custa iguais perseguições. Os dois últimos versículos, no entanto, nos dão uma grande esperança: “Quem der testemunho de mim diante dos homens, também eu darei testemunho a seu favor dele diante do Pai que está nos céus. Aquele, porém, que me negar na frente dos homens, também eu o negarei na frente do Pai”. Ao exortar seus discípulos de todos os tempos à coragem, Jesus pede que não temam as perseguições, pois Deus não deixa sem recompensa quem se manifesta ao seu favor. Quem perder sua vida terrena por causa do evangelho, haverá de recuperá-la plenamente na intimidade do Pai.

Esta é a promessa de Jesus àqueles que o anunciam e testemunham no mundo, como os antigos profetas do tempo do exílio. Quem testemunha em favor de Cristo nada tem a temer. Sua retribuição é certa, iminente, plena. O cristão não pode se intimidar ou ficar com medo de ficar malvisto ou malquisto. Ser cristão é não ter medo das injúrias, das perseguições ou das ameaças daqueles que obstaculizam a instauração do Reino no meio do povo.

Por causa do medo, do respeito-humano ou do materialismo, hoje, um ponderável segmento do nosso povo deturpou o sentido da Ressurreição. Na Páscoa muitos deixam de interiorizar a mensagem da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Preferem aproveitar o “feriadão” para o lazer, o descanso e a gastronomia. Em muitos casos e lugares, a idéia de páscoa parece estar mais ligada aos ovos de chocolate do que à ressurreição de Jesus.Eu aprecio muito a celebração da páscoa dos gregos. Diferente de nós, eles se saúdam com “Xristós anesti”, Cristo se elevou (ressuscitou). E o outro responde: “Alithós anesti”, verdadeiramente ressuscitou. Diz tudo.

Aqui dizemos “Feliz Páscoa”, que suscita em muita gente a idéia de uma felicidade no recebimento de presentes, chocolates, viagens, etc. Se sairmos à rua e perguntarmos “o que é uma feliz páscoa?”, escutamos menções às coisas materiais que fazem o entorno da festa religiosa. É preciso banir a conotação materialista da páscoa, ligando seus festejos à ressurreição e à instauração daquela “vida nova” (cf. Jo 10,10) que Jesus veio trazer.

Em conseqüência da distorção materialista esvazia-se o culto à cruz e à ressurreição, caindo tudo no descompromisso e na futilidade. Enquanto os judeus celebram tão-somente a páscoa mosaica, outros tentam descaracterizar a ressurreição de Jesus, colocando em seu lugar a reencarnação e outros sistemas esotéricos afins. Há pessoas que chegam a afirmar a existência de “provas científicas” da reencarnação, como se coisas de fé pudessem caber dentro da estreita ótica da ciência mundana. Não existe cristianismo sem a fé na ressurreição.

A cada ano, a festa da Páscoa nos suscita novas e ricas reflexões sobre o mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo. Um homem foi morto e levado à sepultura. Aparentemente, a história acabou e o sistema injusto que o condenou, coisa comum até hoje, está satisfeito. Achando-se a pedra do sepulcro removida, e nele não sendo encontrando o corpo de Jesus, as mulheres entraram em pânico. O corpo do rabi havia desaparecido. Um anjo tratou de tranqüilizá-las: “Por que vocês procuram entre os mortos aquele que está vivo? Não está aqui, ressuscitou!”.

Naquele momento, para toda a comunidade apostólica, o fato de encontrarem o sepulcro vazio era ainda uma ponderável incógnita. A descoberta do sepulcro vazio traz consigo diversos fatos capazes de confundir a comunidade apostólica. Tanto assim que Pedro não entendeu. Muitos acharam que o corpo havia sido roubado. Madalena não reconheceu Jesus, confundindo-o com o jardineiro. No primeiro momento, nem os demais acreditaram no testemunho dela. As mulheres entraram em pânico. Os inimigos subornaram os guardas para que contassem outra história. Somente João acreditou. A Escritura diz que “...ele viu e creu” (cf. Jo 20. 8b). Começava a formar-se ali a fé na ressurreição.

Para a apologética cristã do primeiro século, o sepulcro vazio é um elemento importante para a credibilidade do anúncio da ressurreição. É um milagre-sinal. A ressurreição (e sua idéia-chave é o sepulcro vazio) é o ponto de partida da instauração da Igreja e da pregação do evangelho. Não haveria Igreja, e o evangelho perderia sua consistência sem a ressurreição de Cristo. A fé na vitória de Cristo sobre a morte é o centro axial do cristianismo. Fé aqui não retrata apenas a adesão a um conjunto de verdades reveladas, mas subentende vigorosamente um processo de conversão do ser humano ao projeto amoroso de Deus.

A constatação do sepulcro vazio é um fato concreto, a partir do qual as perspectivas do Reino passam a assumir caráter de realização. Até então, o Reino era uma idéia, fruto da pregação, com o suporte de alguns milagres. A partir da ressurreição, as promessas passam a se tornar realidade, quando as angústias e buscas do ser humano passam a ter respostas completas, na dinâmica da vitória da vida sobre a morte.

Como nos ensina São Paulo, “... se acreditamos que Jesus morreu e ressuscitou, acreditamos também que aqueles que morreram em Jesus serão levados por Deus em sua companhia” (1Ts 4, 14). A vitória de Cristo mostra que a vida continua, e que a chegada do Reino demonstra que as promessas tornam-se realidade. É preciso intuir essa revelação, ouvindo a voz de Deus, sem endurecer o coração.

Nesse particular, a ressurreição só tem sentido se revela o futuro dos que esperam em Jesus a passagem para a vida nova. Essa passagem é visível em nós? É a reflexão que proponho a partir deste momento.

O autor é teólogo leigo, biblista com especialização em exegese e doutor em teologia mora.

Meditação levada a efeito em um retiro de religiosas, na cidade de Santa Maria, RS, em maio de 1998.