Falando a Respeito
Falando a Respeito
Muitas vezes começa como uma gravidez. Quer dizer, não se percebe de início. Mas já está instalado no seu sistema. Talvez não seja uma doença, seja apenas um comportamento. Mas este, com o tempo, pode ser considerado uma doença. Dia desses, no entanto, chega a sua hora.
Não, não precisa ser um infortúnio. Talvez a sorte tenha se instalado no seu sistema. É que, como a gravidez, o ciclo é contínuo e progressivo. E o ciclo tem um objetivo. Muito embora em boa parte das instâncias, o propósito não esteja claro. Uma vez instalado, inexoravelmente, transforma-se numa dinâmica governante, que vai finalizar uma etapa, como um parto. Não lhe parece, de uma forma geral, que as coisas funcionam assim?
Pois é. Desde o princípio. Ainda que, difícil negar, essa questão do princípio quase sempre é traiçoeira.
Quando, de fato, as coisas começam, e que importância tem isso?Aliás, o que importa, preservando sempre a relativa importância das coisas, é que elas se adaptam, há um ajuste quase harmônico que inspira e expira, continuamente. Isso parece claro. Os ajustes, porém, são fascinantes. Veja esse exemplo: em determinado continente, determinada espécie de arbusto foi devorada durante anos e anos pelos elefantes do local. Em vias de extinção, os arbustos desenvolveram o próprio antídoto para se preservarem. Suas sementes só passaram a germinar depois de excrementadas pelos paquidermes. Mais precisamente, as sementes forjaram em torno de si uma capa, rompendo-se apenas quando fustigadas pelo suco gástrico do animal. Então sim, germinam. Nesse caso, houve um ajuste, que originou um novo ciclo, porque afinal, já havia um ciclo anterior.
Os exemplos da dita, “vida animal”, apesar da sua peculiaridade, provocam menos esforços nos nossos sentidos. Veja o caso da família - e isso foi noticiado em 1995 - que, no mês de julho se deslocava de sua cidade natal, no interior paulista, para abrigarem-se sob o viaduto da Amaral Gurgel, no centro da Capital. Motivo: em julho eles alugavam a casa, a fim de obter uma renda extra, para pagar a faculdade do filho mais velho. Assim, em pleno inverno, eles moravam em caixas de papelão, ele fazendo bicos como garçom e ela catando papel. Um ajuste no contexto desta célula familiar, penoso, que não deixa de ser um ciclo para que outro, com o canudo da formatura na mão, possa, por sua vez e assim por diante. As vezes, porém, ocorre um desajuste. Para não adentrarmos na tríade S.A.D. (sexo, álcool e drogas), vejamos o caso do bancário de Toronto, que torrou numa única noite 10 milhões de dólares em Las Vegas. Rapaz zero S.A.D., mas com uma compulsão irrefreável pela mesa de bacará. Como você acha que isso começou, com 20 milhões? Começou com 2 dólares, xis anos atrás, como uma brincadeira, mas daí, continuamente, progressivamente.
Nesse instante, me parece lícito ponderar que o percebimento é quase o oxigênio do processo, e que poeticamente pode-se traduzir em: começou com um olhar. Necessariamente, não com esse olhos que você está lendo. Vejamos as cianófitas. Há milhões e milhões de anos foi a espécie de vida predominante no planeta Terra. Cianófitas são uma espécie de alga marinha que se alimenta do hidrogênio contido no, ou na, H2O. As cianófitas tinham fome e comiam o H, liberando o O2, dia a dia, e o O2 ia se ajustando, como produto de um imenso tear, porque a Terra iria passar para outro ciclo, e sua atmosfera futura prescindiria de oxigênio. Ciclos. Não lhe parece que eles tem uma inteligência própria?
Que dia ela começou a pensar em ir naquela festa? Pois foi quando eles se conheceram. Não era uma grande festa e ninguém supunha que eles seriam um grande casal.
Ou aquele rapaz, que aceitou o convite para ser correspondente em Paris, trabalhando como jornalista para o “Correio Paulistano”. Nalgum momento, contudo, a essência artística parisiense o hipnotiza, talvez tenha contatado a sua própria essência, e quem pode afirmar que ele não disse: às favas com as notícias e mãos à obra com os pincéis?
Nalgum momento os processos se iniciam. Com engrenagens próprias, com o ritmo que lhes pertence, com as possibilidades que suas atmosferas particulares lhes apresentam.
E começa como uma gravidez. No principio não é perceptível. Depois é preciso se ajustar, porque algumas coisas, além de inevitáveis, são situações inéditas. Vale lembrar que a gestação é um exemplo cuja serventia tem seus limites. Isso porque, para uma vasta gama de outros exemplos, quando o ciclo finalmente termina, é como um perfume. Você não vê. Mas sente.
Encontros acontecem todos os dias. Necessariamente não precisa ser entre duas pessoas. Pode ser entre uma pessoa e sua ferramenta. O que acontece depois do encontro é uma resultante. Dizem que a regra do acaso é para quem se desprotegeu demais, e que o senhor do seu destino percebe as dinâmicas que governam os fluxos, do seu universo. Há todo instante, no entanto, novos respirares e novos estertores pululam no mundo da forma.
Aquele casal talvez não comemore bodas de nenhuma sorte.
Trata-se de um exemplo aleatório, cabendo ao leitor decidir sua importância.
Já o pintor, também um exemplo, através do rotineiro ciclo do olhar- perceber-agir, ensejou belas trajetórias com seus pincéis. Do casulo de jornalista bateu asas, sendo mundialmente conhecido como
Di Cavalcanti.
Talvez, nesse trecho da reflexão, caiba afirmar que nós, seres humanos, sujeitos a processos de toda ordem, tenhamos ao longo da jornada de nos ajustar, e que esse ajuste, entre incontáveis variantes, signifique: arrebatar, aquietar, aceitar, avançar... Mas temos um grande trunfo, a despeito de tantas mazelas: podemos nos expressar. Tal gesto é sempre um parto. Tem dores e alegrias. “Dia desses chega sua hora”. O início de todo o movimento porém, é imperceptível.