Big Grampo
Privacidade é exposição, democracia é restrição, bisbilhotice é força. O universo imaginário de George Orwell ganha o novo lema, a partir da escuta clandestina da realidade que recebeu o apelido de “grampo”.
Depois que se confirmaram as gravações de conversas graúdas, junto à notícia sobre a capacidade de monitoramento de vozes a partir de telefones celulares desligados – dizem que somente a retirada das baterias garante a liberdade falada – a sensação é de que o Brasil se tornou o país do Big Grampo: dentro das casas, no trabalho, nas ruas, onde houver telefones em uso, todos falam para todos, na terra da cordialidade total e da atenção irrestrita.
Há um dado cultural que não passa despercebido no levante contra a afronta à legalidade e à liberdade individual representada pela distribuição generosa dos grampos. O brasileiro gosta de fofoca, é mexeriqueiro quase por natureza. Nasce falando dos outros e quer que os outros falem dele – bem ou não, como prega o narcísico ditado “falem mal, mas falem de mim”. Por trás da invasão criminosa do domínio privado em nome de um suposto benefício público, uma curiosidade mórbida não se contém, aproveitando-se da facilidade técnica, por um lado, e se valendo da permissividade ética, por outro.
Na trilha da Candinha, das novelas do rádio e da TV, do BBB e do Orkut, o grampo em massa não pode ser considerado algo isolado. No território do comércio informal, camelôs vendem equipamentos básicos de “escuta a distância” a preços populares. Mas isto também não pode ser tolerado como se fosse mais um fato somado a um fenômeno sociológico. O grampo não é puro comportamento – é invasão, é assalto, beneficiado pela personalidade típica nacional.
A face criminosa do grampo nem sempre se mostra nas escutas vazadas ou transcritas na mídia, onde o público é levado a concluir peremptoriamente que “quem não deve, não teme”. Pois apesar dos editoriais e análises que condenam o grampo como atividade ilegal, a sua reprodução é tida como dever moral da imprensa perante uma população ávida por tal tipo de informação – e a fonte ilícita apenas aumenta a audiência. Se o grampo é proibido, por que a sua exposição é livre? Ou ainda: se é condenável, por que lhe dar maior dimensão e amplitude não seria?
A pergunta cabe como nota, e não como afirmativa. O assunto é polêmico, atinge suscetibilidades. No entanto, por envolver diretamente o interesse dos meios de comunicação, a discussão sobre o controle dos grampos não deveria desprezar o poder de reverberação dos vazamentos, para incluir no debate as empresas e os profissionais de comunicação. Obviamente, é do âmbito da responsabilidade que se está falando, e não de qualquer restrição impositiva à liberdade de expressão.
Assim como outra tecnologia, a do grampo não será banida – mas poderá ser desestimulada. O Big Grampo é tão totalitário quanto o Big Brother orwelliano, e se não queremos olhos alheios a nos cercear o dia inteiro, nada de tomar como costume a escuta onipresente de nossas conversas, a exibição permanente de assuntos íntimos, como sugeriu com infelicidade, na pose que bem lhe cabe, um despreocupado ministro de Estado.
A presunção da espionagem da interação telefônica, como defendeu o tal ministro, estaria em consonância com o traço cultural do mexerico, não fossem os abusos do poder policialesco que autoriza a exposição da privacidade, a restrição democrática e a força que bisbilhota.
Neste caso, o silêncio que vem de cima assusta mais que a ameaça do cidadão grampeado.
*Jornalista e mestre em Filosofia.