A privacidade ameaçada e o pensamento autoritário.
A privacidade ameaçada e o pensamento autoritário.
Eurico de Andrade Neves Borba
Ex Professor e Vice Reitor da PUC RIO; ex Diretor Geral e Presidente do IBGE; ex Diretor Geral da Escola de Administração Fazendária; ex Secretario Geral do MEC. Aposentado, escritor, 67 anos, mora em Ana Rech-RS.
O pensamento autoritário não é necessariamente perverso, mas é um pensamento errado. Errado em relação ao processo histórico que, principalmente nos últimos duzentos e cinqüenta anos, vem aperfeiçoando o sistema democrático de convivência social. Errado em relação à pessoa humana, um ser distinto dos demais seres do universo, possuidor de individualidade e detentor de consciência, racionalidade, liberdade e sociabilidade, naturalmente voltado à Transcendência. Em decorrência da sua racionalidade pode, no exercício da sua liberdade, reconhecer e aceitar sua estreita união existencial com Deus Criador, justificando assim, e só assim, seus direitos inatos e inalienáveis e a sua dignidade essencial. A partir desta verdade inicial, deste pressuposto - uma “lei natural” – homens e mulheres, progressivamente conscientes das suas responsabilidades, elaboraram e explicitaram as exigências da ética do agir humano, individual e coletivo. Ora, a sociabilidade, que também é uma característica indissociável da sua natureza de pessoa, conduz o homem e a mulher a viver em sociedade, convida à uma convivência fraterna, justa e democrática. Neste ambiente humano não há lugar para o autoritarismo, regra de vida ditada por um só cidadão ou um só pequeno grupo, detentor do poder e da força física de coerção. É uma contradição, uma excrescência histórica, sempre repelida, mas que de vez em quando volta a tentar se impor como norma de vida coletiva, reflexo de uma tendência para o mal que precisa ser controlada pelos ditames lógicos e naturais do bem. A solidariedade e a participação comunitária são as atitudes humanas coletivas por excelência. Para que tais atitudes humanas floresçam a privacidade é fator indispensável. É no recolhimento do lar que se cultiva o amor, é no isolamento criativo que desabrocham as ciências e as artes, são nos contatos com as demais pessoas que florescem as amizades, é na troca de idéias entre companheiros de ação política que se fortalecem as convicções que forjam as ações, é no debate com outras pessoas que se clarificam as melhores opções nas decisões da inescapável vida coletiva.
Todo este elaborar do viver humano se faz no recato, no isolamento, no convívio de pequenos grupos, o que permite a abertura total do coração e da mente do cidadão e da cidadã, para consigo mesmo ou para com os seus entes queridos mais próximos, na procura de discernimento, de argumentos que fortaleçam suas crenças, construindo-se, assim, os objetivos para a ação histórica de cada um. Estes espaços naturais – o lar, o local de trabalho, as igrejas, os sindicatos, os partidos políticos, os diversos instrumentos de comunicação pessoal que a tecnologia moderna oferece para possibilitar a comunicação e o dialogo, são invioláveis. São formas de expressão do mais intimo de um ser humano. Ninguém pode interromper ou participar, sem convite, destes momentos preciosos de isolamento, nem invadir estes locais santuários, pois, assim procedendo, estará liquidando com a fonte primeira da liberdade humana – aqueles momentos especiais onde a pessoa está conectada à sua mais profunda intimidade, à sua mais profunda interação com o seu próximo ou o seu Criador, na busca da perfeita expressão do significado da existência nesta sua trajetória cósmica. É o instante radical e sublime da liberdade aonde se realiza plenamente a pessoa – na comunicação consigo mesmo, com seus entes queridos e com Deus.
Ninguém tem o direito, ninguém pode, ninguém tem a autoridade de se sobrepor à intimidade de uma alma, à privacidade de um cidadão ou cidadã, quaisquer que sejam suas justificativas e explicações, a não ser em ocasiões muito especiais e raras. Ocasiões não freqüentes, pois não vivemos, apesar da violência e da corrupção que existem em nossos dias, numa sociedade de bandidos – a maioria da população é honesta. Esses momentos, raros, são claramente definidos em Leis, interpretadas pela responsabilidade e pela sabedoria do Poder Judiciário, executadas por organização policial competente e disciplinada, conhecedora dos seus limites operacionais. Assim operando, o Estado Democrático de Direito atento aos acontecimentos, permitirá, de acordo com a Lei, que sejam tomadas as medidas necessárias, se e quando necessárias, que impeçam e punam o mal que procura, sempre, suplantar o bem, aproveitando-se da liberdade que o sistema democrático a todos oferece.
Certamente estas características da natureza uma da pessoa humana - sociabilidade, liberdade e inteligência - vão saber distinguir, com sabedoria, prudência e justiça, aqueles desvios comprovados ou altamente suspeitos de corrupção comportamental contra o bem comum da sociedade, fato que, então, com responsabilidade e sob a proteção de Leis justas e a fiscalização de agentes públicos idôneos, a privacidade deixará de ser absoluta em função da defesa do bem maior que é a vida justa, fraterna e democrática para todos, que está então, de fato, sendo ameaçada. Nestes casos e somente nestes, com o respeito à liturgia de ação policial, preconizada pelas Leis e interpretadas pelo Poder Judiciário, é que se poderá pensar em romper, por tempo e objetivos determinados, com a privacidade de cidadãos e cidadãs altamente comprometidos com más condutas ou suspeitos de crimes.
É inaceitável que a cada dia sejamos agredidos com as noticias de que “arapongas” vários – Policia Federal, Agencia Brasileira de Inteligência, Empresários – estão a escutar as nossas conversas telefônicas, a vasculhar as nossas contas bancárias, a examinar as nossas despesas com cartões de crédito, a bisbilhotar a nossa saúde acessando os resultados dos nossos exames médicos. A tecnologia disponível para a invasão da privacidade das pessoas é inacreditável – uma ameaça aos direitos do cidadão se utilizada ilegalmente pelo Estado, como está acontecendo.
Do Estado os cidadãos esperam proteção, não intromissão ilegal nas suas vidas, num eficiente e truculento processo de atemorização crescente. Com estas práticas, estamos aperfeiçoando a democracia ou criando as precondições necessárias para a implantação de um estado totalitário?
Dirão estas “autoridades”, que por qualquer suspeita passam a romper com a privacidade das pessoas – não se preocupe, estamos “verificando” possíveis ladrões, não cidadãos honestos... Que arrogância! Que audácia! E se amanhã, com esta “ligeireza” decisória os atuais cidadãos honestos passarem a incomodar estas “autoridades”, ou porque defendem o meio ambiente, ou porque são eleitores de um partido opositor ao que no momento ocupa o governo, ou porque são cristãos, ou porque são judeus, ou porque são parlamentaristas, quem garantirá que também não poderão ser ilegalmente “grampeados”?
Defender a democracia, a liberdade e os direitos da pessoa humana, sempre de alguma forma ameaçados, parece ser coisa cansativa: – no entanto precisa ser uma atitude permanente da cidadania. Muitos “líderes” são suficientemente idiotas para afirmar que os protestos sobre a violação de direitos, que estão ocorrendo, são exageros emocionais e teóricos de conservadores que querem tumultuar o trabalho da polícia e proteger bandidos ricos. Parecem acreditar que o consagrado princípio do direito positivo dos povos “todos são inocentes até que se prove o contrário” foi reescrito: – “todos são culpados até que se prove que são inocentes...”
O nosso povo brasileiro, os povos do mundo inteiro, parece que estão cansados de defenderem a democracia, a liberdade, tantos são os escândalos, de toda a ordem, que a cada momento são divulgados. É inegável que a má qualidade da educação que está sendo oferecida, o afrouxamento moral das famílias e das sociedades, o enfraquecimento das religiões históricas, está conduzindo a humanidade para um estado de incomoda intranqüilidade, mas que não se traduz em ações efetivas de recuperação do Humanismo pelo simples fato de que esta alternativa não é mais oferecida pelos partidos políticos. Aliás a política está sem programas, os políticos desorientados – o mundo está sendo conduzido, cada vez mais, por especialistas, objetivos e pragmáticos, que não se preocupam com os necessários aspectos morais da conduta humana, principalmente o efetivo respeito aos direitos das outras pessoas. A filosofia, a teologia, as artes e a história não os seduzem mais...
Há que se exigir, sempre, o cumprimento de todo um ritual jurídico para o exercício do poder de polícia, prerrogativa do Estado. Só assim poderemos ter a tranqüilidade de que os direitos do cidadão estão sendo efetivamente respeitados.
No caso brasileiro, ou reagimos agora, apoiando fortemente as ações do Supremo Tribunal Federal – o sagrado ultimo reduto da democracia e da liberdade - exigindo o fim destas práticas nefandas, ou poucas serão as esperanças que nos restarão para a construção pacífica e cooperativa, de um futuro mais justo, livre e democrático.
Esta pratica solerte é perversa e sutil. Compromete a democracia, sob cuja sombra protetora operam as autoridades criminosas, não para homenageá-la e fortalece-la, mas para ajudar a progressiva instauração da pior forma de dominação política: – a impostura do mal disfarçada em bem.
Nota – este artigo, motivado pelo escândalo das escutas telefônicas feitas nos aparelhos do Presidente do Supremo Tribunal Federal e de um Senador da Republica, foi enviado, dia 1º de setembro para vários jornais de Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Recife e Fortaleza.
Até a presente data, 9 de setembro, não foi publicado.
Romper as “panelinhas” dos jornais, que só publicam artigos de “figurões” ou dos amigos do Redator Chefe, é um desafio complicado para quem está atento aos acontecimentos, quer e pode contribuir para o debate e não consegue romper esta “barreira”. Em princípio a página de editoriais é aberta à colaboração dos leitores. Quais são os critérios de seleção dos artigos? Poder publicar o que se pensa nos jornais é uma dimensão da democracia. Os jornais precisam democratizar o acesso às suas colunas de “Opinião dos Leitores” – sei que muitos enviam matérias e que não lugar para todos: - mas nunca se conseguir uma “brecha”, depois de anos de tentativas, é muito estranho...
Eurico de Andrade Neves Borba