A crise da Idade Média vista a partir do filme O Nome da Rosa
No filme O Nome da Rosa, de 1986, dirigido pelo francês Jean-Jacques Annaud e baseado no célebre romance homônimo do não menos célebre pensador e escritor italiano Umberto Eco, temos um retrato da Baixa Idade Média e ao mesmo tempo uma forte crítica à visão de mundo daquele momento histórico.
A trama do filme pode ser resumida do seguinte modo. O frade franciscano (Sean Connery), William de Baskerville, o protagonista, é encarregado de investigar a misteriosa morte de um monge num mosteiro beneditino localizado na Itália, em fins da Idade Média. Após lá chegar, as mortes entre os reclusos continuam, sempre de forma bastante estranha. As vítimas aparecem sempre com os dedos e a língua roxos e sempre em condições funestas.
O mosteiro guarda uma imensa biblioteca, à qual apenas dois monges têm acesso às publicações sacras e profanas. A chegada do monge franciscano, incumbido de investigar os casos, irá mostrar o verdadeiro motivo dos crimes, resultando na instalação do tribunal da santa inquisição.
A Baixa Idade Média, a segunda metade do período medieval, do século XI ao XV, é marcada pela desintegração do feudalismo e pelo início da formação do capitalismo na Europa Ocidental. Nesse período tivemos transformações de ordem econômica, como a intensificação e a sofisticação das trocas monetárias, de ordem social – burguesia ganhando papel de relevo cada vez maior –, de ordem política – formação das monarquias nacionais representadas pelos reis absolutistas – e religiosas, com os questionamentos ao status de então do pensamento cristão e de determinadas posturas da Igreja Católica, o que culminou na Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero na Alemanha de 1517. Já no âmbito cultural, temos o embrião do Renascimento, que surgiu efetivamente no século XIV, na Itália, e teve seu auge no século XV, após ter-se espalhado pela Europa. Esse gradual movimento cultural resgatou da antigüidade greco-romana os valores antropocêntricos e racionais, que adaptados ao período, entraram em choque com o teocentrismo e o dogmatismo medievais sustentados pela Igreja.
O Nome da Rosa trata justamente desta crise da cultura medieval, a partir do microcosmo representado por um monastério. No filme, o frade franciscano representa o intelectual renascentista, que com uma postura humanista e racional, consegue desvendar a verdade por trás dos crimes cometidos no mosteiro, que claramente não poderiam ser resolvidos pelos tradicionais métodos consagrados pela Igreja medieval.
A biblioteca proibida e isolada, guardada por dois monges e isolada do restante dos sacerdotes – e do mundo – pode ser vista como um símbolo do novo mundo que se descortinaria em breve, apesar da resistência de indivíduos e instituições tipicamente medievais.
Temos no filme, inclusive, elementos estéticos que ilustram a atmosfera medieval, como a fotografia, que transmite sempre um ar sombrio e desolador, reforçando a cultura da contrição, reserva e isolamento entre os sacerdotes – e até certo ponto, a população em geral – da Idade Média.
No filme vemos representada a semente do pensamento científico moderno, baseado na busca da verdade, na tentativa de explicar o mundo sem dogmatismos ou repetição maçante de crenças inadequadas aos fatos, ilustrada pela investigação e elucidação do mistério que paira no monastério; o autor do livro no qual o filme se baseou fez uso da estrutura narrativa dos romances policiais, de mistério, para construir sua representação crítica de um mundo em crise. Guilherme de Bascerville, o frade detetive, é também o novo pensador que surge com o incipiente Humanismo, é ele quem investiga, examina, duvida, questiona e, por fim, com seu método empírico e analítico, desvenda o mistério, ainda que para isso seja pago um alto preço.