O QUE É NARCISISMO?
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas. 3ª ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1979. p. 19-20.)
Observa-se no poema acima que o homem é gregário por natureza. Entretanto, o sujeito solitário não é capaz de desenvolver determinadas habilidades imprescindíveis para a condição humana, quais sejam: a hospitalidade, a solidariedade, a fraternidade, o congraçamento de idéias e a troca de afetos. Portanto, para citar George Lukács, em sua Teoria do Romance, observamos: O céu estrelado de Kant não brilha senão na escura noite do puro conhecimento; já não ilumina o atalho de nenhum viajante solitário e, no mundo novo, ser homem, é ser só.
O homem moderno, deste século, contrariamente ao homem do século passado, emerge em uma sociedade altamente competitiva e precariamente preparada para ampará-lo emocional e materialmente. As sociedades primitivas se organizavam de forma a sobreviverem, primordialmente, das agriculturas de subsistência. Com o advento da industrialização e do capitalismo que grassaram quase no mundo inteiro, no final do século XVIII, houve uma divisão cada vez maior das sociedades. Vivemos, portanto, em um mundo altamente cindido!
Claramente, bipartia-se o mundo em “os que têm” e “os que não têm”. Assim, numa sociedade cada vez mais competitiva e distanciada dos valores afetivos, morais e fraternos, vai surgindo o homem autocentrado, dando lugar ao que psiquiatras e psicanalistas classificam como “Narcisista”.
O Narcisismo tem o seu nome derivado de Narciso, e ambos derivam da palavra grega "narke" que significa "entorpecido", de onde também se origina a palavra narcótico. Assim, para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, visto que ele era emocionalmente entorpecido às solicitações daqueles que se apaixonaram pela sua beleza. Percebe-se, desse modo, que o Narcisismo leva a pessoa a eleger-se a si mesma como objeto de amor, em vez dessa emoção ser transmitida a outra pessoa de sexo oposto.
O homem que se encantou consigo mesmo, subsiste nos dias de hoje, adotando um caráter egocêntrico e único. A sociedade de consumo usa de uma tirania odiosa para torná-lo cativo, fazendo-o consumir tudo o que há de mais moderno, desde a simples “pá de lixo” às mais modernas máquinas digitais fotográficas sofisticadas, (é o que Baumann chamou de "Modernidade Líqüida") imprimindo no homem a vontade irrefreada do consumo. Assim, desenvolvendo um autocentrismo doentio, os sujeitos vão se desfazendo dos laços de consangüinidade, desprezando descendentes e antepassados. O indivíduo narcisista não vive sem a platéia. Precisa que lhe confirmem “sempre” sua grandiosidade e sua formosura. Só assim pode ter a sua auto-estima firmada, balizada na opinião do outro.
A classe média “analisada” precisa do apaziguamento da terapia para poder suportar a sua própria indiferença (abonar sua culpa) perante os problemas que afligem a humanidade: a desigualdade social, o racismo, a não-aceitação dos diferentes, a não-adesão ao hibridismo cultural etc.
A Subjetividade dos sujeitos:
Necessariamente, a subjetividade está relacionada ao que é único, singular nos indivíduos. Como pano de fundo, para lidar com este “sujeito sofrente” (Birman, 15) nos deparamos com uma sociedade que desampara não só estes sujeitos, mas toda sua história, negando valores já constituídos e tentando impor um imediatismo que se desenrola a partir da falta de compreensão e do abandono. Em seu livro “Mal Estar na Civilização”, Freud já descrevia esta inadequação dos indivíduos na modernidade. De alguma forma, no imediatismo da contemporaneidade, nos deparamos com a total “falta de competência” para lidarmos com a não realização de nossos desejos mais íntimos. A partir destes obstáculos, começamos a adoecer: a modernidade trouxe em seu bojo a “glória” para o homem que é uma glória inatingível, por assim dizer: Guy Debord, em sua Sociedade do Espetáculo nos esclarece:
"o caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples facto que os seus meios são ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória." (p.16).
Assim, este homem constrangido, por não conseguir “sanear” seus medos e seus impasses vai adoecendo seu espírito irremediavelmente. Portanto, as depressões, os pânicos, as psicoses seriam a impossibilidade do indivíduo, ou dos indivíduos lidarem com estes ódios e estas frustrações. Feridas não cicatrizadas do espírito são uma “abertura” considerável para que se desenvolvam as doenças psicossomáticas. Então, “ao limpar a chaminé” (termo proposto por Brauer, predecessor de Freud) o indivíduo faria, neste ato confessional, seu caminho para uma possível cura.
Há que se notar o grande interesse hoje, pelas terapias de “sucesso rápido”como as chamadas cognitivas comportamentais, que tratam o problema do indivíduo “imediatamente”, e não buscam analisar profundamente suas questões mais densas. Atrelado a isto, para Birman, existe todo um aparato comercial que se engendra neste contexto. Ouçamos o que nos diz o autor de Mal estar na atualidade:
Além disso, existiria uma articulação fundamental entre os processos de medicalização e psiquiatrização do social, mediados pelas neurociências e pela psicofarmacologia, e a construção empresarial gigantesca do narcotráfico. Estas duas operações sociopolíticas são historicamente correlacionadas...Os destinos do desejo assumem, pois, uma direção marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter humanas. Esse é o trágico cenário para a implosão da violência que marcam a atualidade. (p.24)
Assim, o autor considera que a sociedade que traz em seu interior esta facilitação, esse transbordamento de “oferecimentos”, para a cada dia mais, a inflar os egos e a sustentar o autocentrismo, dando aos indivíduos, muitas vezes uma importância que está longe de lhes pertencer, tornando-o fragilizado e incapaz de lidar com sua subjetividade. Portanto, o recuo para dentro de si mesmo é quase que uma necessidade e, deparar com estas questões, normalmente causam dor e conflito.
Diante deste quatro, é crescente a falta de solidariedade entre os indivíduos, isto assume um caráter profundamente ameaçador. A explosão da violência é a principal “colheita” deste profundo desprezo que os sujeitos oferecem uns aos outros. A troca, a alteridade, a afabilidade tornaram-se utopia, “cada um por si e Deus por todos”, seria uma frase muito apropriada para descrever esta situação impactante. O ego auto centrado vê o outro como “uma conquista a mais”. Tirar proveito das situações que lhe interessam passam a ser seu objetivo primeiro. O que se pode notar, é que por estes caminhos floresceram regimes de exceção que ceifaram milhares de vida em todo o mundo. A barbárie tomou conta das cidades, o assassinato virou modelo, como os crimes de Columbine. Há uma frieza nas relações humanas que se assenta neste “ego volumoso”, nesta falta de polidez com nossos afetos.
Repensar a psicanálise a partir da subjetivação dos sujeitos parece ser um caminho para que os desejos mais profundos do indivíduo possam ser trabalhados. Birman nos fala aqui de um “marco zero”, para que possa ser revista as práticas que a Psicanálise impõe hoje à modernidade Re-começar, sensibilizar, desfazer-se de conceitos já estabelecidos são matéria prima para o re-início.
Dando seqüência às questões que permeiam os conflitos e o desamparo dos indivíduos hoje, precisamos entender o que se passa quando o sujeito sente-se desamparado. Sua vocação para o masoquismo, para “a adesão” ao outro, se faz como forma de aplacar sua angústia, que está instalada em todos nós quer sejamos analisados ou não. O que parece ocorrer com o homem autocentrado é que ele tende a usar o outro para que, de qualquer maneira, sua dor seja aplacada. Este ego inflacionado é capaz de subjugar o outro para usá-lo para seu próprio prazer e, fazer deste, seu escravo, ou mesmo tornar-se servo para alimentar suas praticas de perpetuação do seu ser. Dessa forma, os limites de respeito ao próximo, o respeito às diferenças como credo, etnias, sexualidade e afins, ficam diluídos. O que importa para o masoquista são apenas sua opiniões e suas crenças, como forma de estabelecer sua arrogância. Birman adverte para que comportamentos desta natureza, ou seja, a universalidade da subjetivação, pode dar lugar a sociedades igualitárias, calcadas no autoritarismo, sem o devido resguardo do que é no outro singular, no descaso com as percepções mais singulares, o que nos restaria seria uma sociedade sem percepções únicas, moldadas pelo “pensamento” espetacular.
A CRISE DA PSICANÁLISE:
Nos anos 70, a transformação dos acontecimentos nos planos políticos e estéticos tornaram o Brasil, o “centro da criatividade”.A pós-modernidade, trouxe em seu âmago, uma semente criadora que impulsionava o indivíduo ao desejo da transformação. O desejo, ele mesmo, era o foco para fazer acontecer, vivia-se o “boom” dos modismos. Neste contexto, floresceu a psicanálise que se expandiu enormemente, mas que teve seus contornos delimitados logo nos anos 90. A classe média, norteada pela “sociedade do espetáculo” e ávida por mudanças, recorreu, então, a métodos mais “eficazes”, de um efeito mais imediato, porque a demanda para a psicanálise seria por demais oneroso e longo. Métodos mais simplistas com ajuda de tranqüilizantes e afins entram em cena, fazendo com que arrefecesse os tratamentos psicanalíticos.
Uma outra questão que se coloca é a ruptura que se verificou com a passagem da modernidade para a pós-modernidade: um profundo corte operou-se a partir do desejo. Os sujeitos, incrédulos, perceberam que não poderiam mais se transformar a partir do desejo, de sua própria crença interior, como forma de estabelecer uma relação dialógica com seu próprio eu interior. Dessa forma, o indivíduo desacredita-se de si e não estabelece mais as formas de mudar a sociedade em que vive.
Marx, ao propor o sonho da transformação do sujeito coletivo, prenunciava também para a psicanálise que o sujeito ao deixar de trabalhar sua individualização, suas singularidades obscurecia, de alguma forma, seu potencial transformador de suas realidades. Para Freud, o desejo é transformador do indivíduo, o sonho como ponto de partida para realização do desejo é o primeiro passo para a transformação de si mesmo e do mundo.
Esse egocentrismo que carrega o homem moderno vai de encontro ao que a psicanálise nega. Senão, vejamos: é preciso que se faça a desconstrução do eu e deixe que pulsões e desejos tomem conta do indivíduo para se concretize um novo eu: que se deixa falar pelo inconsciente e pelo desejo, para assim nascer um novo homem, exatamente como antevia Marx em seu postulado de fazer a revolução através do coletivo. Assim, quando se dá o egocentrismo e a cultura do espetáculo, há um retraimento no espaço de atuação da psicanálise.
Os seguidores de Freud equivocaram-se ao transferir o desejo para a individualidade, desta forma, houve uma inversão que veio contribuir para que a própria psicanálise nos dias atuais faça um discurso voltado para a individualidade. Sob esta ótica há que se notar a contribuição da psicanálise para o crescimento e o reforço da individualidade.
A cultura no narcisismo está edificada pela diluição da alteridade. Esta, relegada a segundo plano, ao rés do chão, dá status e confina o sujeito ao "silenciamento", reforçando seu individualismo, acirrando assim uma competição perversa e desigual. A mídia, por sua vez, “apadrinha” e “acende” este individualismo tornando célebres de um dia para o outro pessoas que se destacam, mas logo depois desaparecem, para dar lugar a novos “talentos”, a novos egos que reluzem num espaço próprio para um brilho muito fugaz!
O ponto fundamental deste egocentrismo parece-nos ser a dissolução dos afetos, pois para o individualista, não importa a maneira que ele possa obter prazer, mas o quanto de prazer pode lhe ser proporcionado para reforçar seu próprio ego.
Voltando um pouco mais à historia das depressões, dos pânicos, das doenças relacionadas ao transtorno do humor, vimos, então que a modernidade trouxe consigo estes males. O ego autocentrado “lida mal” com a derrota. Portanto, o indivíduo deprimido e panicado (para usar a própria expressão de Joel Birman) seria aquele que não pode lidar com sua própria condição de ter fracassado, tem pouca tolerância à frustração , porque precisa sempre estar pronto para a “exigência do espetáculo”. Retornar com este sujeito de volta à busca do desejo é fazer o sentido inverso ao que se espera da "espetacularização". Fazer parar este eu que busca a notoriedade a qualquer preço, fazer do indivíduo um “não predador” de si mesmo e do outro, seria um passo importante para a reflexão verdadeira do seu desejo e a volta verdadeira à psicanálise.
Atrelado à questão narcísea, o homem, sem exercer e reconhecer valores de fraternidade e compartilhamento de afetos segue cego sem se preocupar com o outro, se importando somente com as questões que lhe dizem respeito. Durante a segunda guerra floresceram na Europa regimes de exceção que ceifaram, em sua rudeza e arrogância, milhares de vida. Como herança, deste horror, sobrou-nos o racismo, a intolerância e o desrespeito ao outro, como “matéria prima” de ratificação do ego. Os recentes acontecimentos de barbárie quer sejam aqui ou na América (11 de setembro, por exemplo), dão-nos um alerta importante dos próximos tempos.
Notadamente, o que está em jogo neste século e a sobrevivência a qualquer preço. O resgate da alteridade e da afabilidade é questão de urgência. Resgatar a alma é o "marco zero".
BEBI NAS FONTES: BIRMAN, MARX, GUY DEBORD, JOÃO CABRAL DE MELO NETO,FREUD, BRAUER, BAUMANN E GEOG LUCÁKS.