Tudo o que não sou
Como já passei dos trinta, volta e meia me perguntaram se não sinto a necessidade de me casar. É claro que sinto. Formar uma família é algo natural a todo ser vivo. E é uma necessidade natural para mim assim como outras necessidades que ainda não satisfiz. O detalhe é que é algo que não me preocupa atualmente por um simples motivo: eu não sou a soma das minhas necessidades. Eu não me defino nem me identifico por elas. Seria até contraditório se o fizesse: se eu necessito de algo que tenho carência em um determinado momento, então eu seria aquilo que falta em mim? Sou aquilo que não tenho? Totalmente sem sentido. Eu não sou o que não tenho assim como não sou o que tenho, o que pareço, o que faço, o que penso ou ainda o que penso que sou. Parece complicado? Sei que parece, mas é só porque é complicado alguém hoje dar numa resposta satisfatória quando a pergunta é "quem é você".
Muitos diriam: eu sou fulano de tal, citando de imediato o nome familiar, legal ou religioso. Mas eu não sou um conjunto de caracteres. A minha vida não é papel nem ondas sonoras. O nome é meu, mas eu não sou ele. Será o nome, e só no final da vida, que revelará um pouco de mim. Até lá, ele é apenas um título incompleto para definir alguém que ainda não se definiu muito bem para si, quanto mais para os outros.
Alguns responderiam: eu sou engenheiro, ou advogado, ou pastor, ou estudante. Eu não sou aquilo que faço. Senão, se eu fosse desempregado, ateu ou alguém que trabalha com algo que não gosta, eu não seria nada ou seria algo que não gosto. Apesar de muitos nos empurrarem esta idéia como a certa, lá no fundo, sabemos que não é assim. Não sou o que faço, apesar de minhas palavras, pensamentos, ações e omissões apontarem a direção para se chegar em quem eu sou.
Da mesma forma, outros alegariam: eu sou feliz, sou extrovertido, sou bondoso. É parecido com o argumento anterior, mas eu não sou um adjetivo ou uma situação. Isso porque os adjetivos mais justos ou exatos para me definir podem nunca ser usados, tanto pelos outros quanto por mim. E um adjetivo nunca define a essência, apenas classifica e referencia a aparência. Eu não sou a aparência, eu sou a essência.
Ainda existem os que pensariam assim: sou a soma de tudo o que pensam de mim. É claro que aqueles que não sabem nem mesmo o que eles próprios são não podem saber muito mais sobre outros. Nem a minha mãe sabe quem sou. Nem a minha esposa saberá. Tanto é que há pessoas que vivem juntas por décadas e ainda são capazes de surpreender os companheiros. O que ocorre na maioria das vezes é que pensamos que conhecemos tudo sobre o outro, mas a verdade é que nos acomodamos em conhecê-los mais, consideramos que aquilo que sabemos já é suficiente.
Eu não sou o que como. Não sou o que falo. Não sou o que falam. Não sou o que penso. Simplesmente sou. Por exclusão de tudo o que não sou, chego ao pensamento dos antigos sacerdotes egípcios, que diziam: O ser é. Simples, sem adjetivos ou acessórios. Talvez conseguíssemos entender o que isso significa parando de acrescentar coisas supérfluas ao ser para tentar defini-lo através delas. Seria o tirar as roupas, cascas, máscaras e camadas superficiais até encontrar a essência interna, pessoal, única e por que não, divinoa Já ensinavam os monges tibetanos: Quando houver cessado de ouvir os muitos, poderá discernir o UM – o som interno que mata o externo. Porque então a Alma ouvirá e se recordará. E ao ouvido interno falará A Voz do Silêncio. Portanto, se estiver em dúvidas sobre quem você é, neste momento, tente afastar-se de tudo o que dizem que você é, vá a um local isolado e procure ouvir aquela voz interior que só aparece quando você procura escutá-la. Assim, saberá também o que você é, e não somente o que não é.