Supremo coito venal
Lá por 1980, quando morei no nordeste, ocorreu por lá um conjunto de fatos insólitos, que passo a dividir com meus leitores. Um padre italiano, Vito Miracapillo, que trabalhava em uma comunidade de Recife se negou a celebrar uma missa no dia 7 de setembro, alegando que o povo não tinha motivo nem liberdade para celebrar. Era um tempo de fétida ditadura, e um deputado pernambucano, Severino Cavalcanti (PDS-PE) se não me engano, pediu a expulsão do religioso por desrespeito à “soberania nacional”.
O fato transitou pelas cortes, acabando por se concretizar, após decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). O pedido de anistia do padre ainda tramita até hoje. Ele quer voltar ao Brasil, não como turista mas definitivamente, e retomar seu trabalho missionário.
Na época, foram entrevistar outro religioso, o padre Reginaldo Velloso, um modesto pároco de bairro que trabalha no Recife até hoje, para saber o que ele achava da expulsão do colega. Usando de uma linguagem intimorata, Velloso classificou a expulsão de Miracapillo como “um supremo coito venal”. Foi o que bastou para ele ser preso. Na realidade, aquele coito violentou a expectativa de democracia do povo. O incidente, pelo autoritarismo, fez e faz rir muita gente até hoje. Mas este não é o centro do assunto.
Eu – como aliás a maioria dos brasileiros – sempre imaginei que o Supremo era a corte judiciária de mais elevada credibilidade, uma das poucas entidades sérias, nas quais anelos de ética e de justiça do povo pudessem repousar e ter segurança de apreciações isentas. Que engano!
Recentemente, o STF brindou a nação com algumas atitudes no mínimo desastradas. A primeira delas foi a libertação do banqueiro Daniel Dantas. Acossado pelo clamor geral, ele foi preso duas vezes pela Polícia Federal, prisão esta confirmada por um Juiz Federal. Quem ficou no prejuízo foi o ator global Daniel Dantas, confundido com o homônimo, que anda por aí livre, leve e solto. Não é porque alguém tem dinheiro ou prestígio que deve receber tratamento privilegiado, e sair da prisão rindo de todos.
O segundo desastre, assim como o terceiro, é recente. O STF decidiu que os candidatos a cargos eletivos, mesmo aqueles que têm a vida pregressa mais suja que pau de galinheiro, pudessem homologar suas candidaturas. Era a hora de se passar o Brasil a limpo. Se você ficar devendo para o Imposto de Renda seu nome sai na “lista negra”. Se tiver pendências com a justiça pode se candidatar a ser um representante do povo. Quem podia corrigir esse engano era o Congresso, mas a eles não interessa a proibição nem a divulgação dos nomes dos salafrários, pois iria atingir gente da casa. Assim, vai ficar tudo na mesma.
O terceiro “engano” correu por conta da liberação do uso de algemas para “alguns” presos. Não, não se assuste: os ladrões de galinha, o faminto que rouba comida no mercado, os menores infratores esses vão continuar sendo algemados e indo no camburão. O “supremo” liberou das algemas apenas o pessoal do “colarinho branco”, os “doutores”, banqueiros e figurões políticos. Embora a Constituição reze que “todos são iguais perante a lei”, alguns são credores das benesses legais.
Olhando tudo isto, e plagiando o padre Reginaldo, não é difícil afirmar que a lógica social do país continua sofrendo “supremos coitos venais”, assim como é fácil observar o quanto estamos desprotegidos.
o autor, 66 anos, é Filósofo e Doutor em Teologia Moral