O ABORTO LEGAL NÃO EXISTE
Hélio Bicudo
Como estamos lembrados, a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos Deputados, em votação desempatada pelo voto da relatora, aprovou projeto que pretende regulamentar o artigo 128 do Código Penal, determinando o atendimento, pela rede pública de saúde, de mulheres que em conseqüência de gravidez recorrem ao aborto como único meio de salvar sua vida ou porque foram vítimas de estupro.
Em decorrência de recurso oportunamente interposto, a decisão daquela comissão deverá passar pelo crivo do plenário da Câmara dos Deputados.
Convém advertir, desde logo, que o aludido dispositivo do Código Penal vigente não desclassifica o crime de aborto. Tão-somente concede, nos casos que contempla, a não punição desse delito, dispondo, in verbis: ‘‘Não se pune o aborto praticado por médico: I — se não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário); II — se a gravidez resulta de estupro...’’
Convenha-se que, no primeiro caso, o progresso nas técnicas de correção e proteção da gravidez reduz a percentuais insignificantes as hipóteses em que se configura o estado de necessidade. E, no segundo, esbarra-se no fato de que o artigo 5º da Constituição garante a inviolabilidade do direito à vida.
O argumento de que se tem lançado mão, de que não se objetou, até hoje, a constitucionalidade do aludido inciso legal (artigo 128, II, do Código Penal), não encontra amparo na melhor hermenêutica constitucional. Nesse passo não há que falar em preclusão, pois, é princípio assente que não serão recepcionadas pela Constituição as leis anteriores à sua promulgação, quando violaram direitos e garantias fundamentais.
Aliás, é até mesmo prescindível a declaração explícita de inconstitucionalidade, uma vez que aquilo que é contrário à Constituição não permanece no ordenamento jurídico. E quando se trata, como na espécie, de direito fundamental, essa expulsão decorre da própria promulgação do texto maior.
E nem se diga que, existindo outras formas de fecundação do óvulo — com o que se tem o início da vida —, não teria maior sentido a proteção, tão-só, do resultado da concepção ocorrida como conseqüência do ato sexual normal entre homem e mulher.
A questão, que advém de novas técnicas de concepção, não pode servir como empecilho à preservação da vida humana em quaisquer circunstâncias. De lembrar-se que, no instante em que na Inglaterra jogaram-se no esgoto embriões humanos, se abriu discussão, que ainda não chegou a termo, com severas implicações éticas, sobre a legitimidade de semelhante procedimento, começando por falar-se em assegurar os direitos do embrião.. O fato de haver genocídios não legitima a eliminação, sequer, de uma pessoa.
Hoje, as dúvidas de Joshua Lederberg, em 1958, não mais procedem, estando os geneticistas concordes em que a união dos zigomas masculino e feminino determinam um novo ser, com quadro genético já determinado. A professora Silmara Chinelato de Almeida, incansável defensora dos direitos do nascituro, vem advertindo que, ‘‘do ponto de vista biológico, não há dúvida de que a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto’’ (Direito da Família e a Constituição de 1988, Saraiva, 1989).
Não se põe em dúvida, pois seria até mesmo acaciano, dizer que o direito deve ser interpretado inteligentemente. E é nesse sentido que se impõe a premissa da preeminência da Constituição sobre a lei ordinária, justamente quando a tradição do direito brasileiro vai no sentido da proteção da pessoa concebida, vale dizer, do nascituro, como dispõe o Código Civil em seu artigo 2º, e aparece conservado no projeto de novo Código Civil, ora em andamento no Senado Federal.
De acrescentar-se que, segundo a Declaração dos Direitos da Criança, adotada em 20 de setembro de 1959 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, a criança não tem sido atendida na sua maturidade psíquica e intelectual à falta de uma proteção especial legal apropriada, antes e após o nascimento.
Desde 1959, nenhum Estado se opôs abertamente aos princípios proclamados nessa declaração e, por conseqüência, pode-se afirmar, na conformidade da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, que a norma sobre a proteção da vida antes do nascimento deve ser considerada como um jus cogens, pois a consciência comum dos sujeitos da comunidade internacional a faz. Ademais, essa norma está hoje inserida no preâmbulo da nova Declaração dos Direitos da Criança.
Não vale, portanto, buscar nas exceções a vontade geral da lei.
Hélio Bicudo
Jurista, é deputado federal pelo PT de São Paulo, membro eleito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, presidente do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo e membro do Fórum Interamericano de Direitos Humanos (Fideh). É autor de "Violência: O Brasil Cruel e sem Maquiagem", entre outros livros.
Extraído do boletim informativo da AMATRA-X