NA FESTA DO LIVRO EM PARATY
A cidade de Paraty que conheci e lá morei por um tempo, nos anos 60 do século passado, não deve ter mudado, quanto a sua arquitetura barroca, pois é tombada, e por tanto intocável, e pelo encanto que possui; seu entorno porém deve ser, digamos, moderno. É nessa cidade que acontece uma das mais importantes festas dos livros – e deve ser festa por que sem ela não se vende livros no Brasil - atraindo milhares de pessoas. Nunca mais voltei a Paraty mas dela guardo lembranças; de lugares, de acontecimentos e de pessoas, principalmente. Os anos que se passaram roubaram-me a maioria de seus nomes; ficaram todavia seus semblantes, seus gestos,seus sons. Eram poetas,cineastas,artistas plásticos,músicos,escritores,desocupados,aventureiros e uns poucos turistas ocasionais que se aventuravam a descer a Serra do Mar pela cidade de Cunha, por uma estradinha de terra, estreita e sinuosa; por ela vinham os paulistas. Quem vinha do Rio chegava por Angra, de barco. Éramos mochileiros sem mochilas, que na época são se usava como hoje, de vários modelos, em qualquer ocasião, por que não existiam aqui; só na Europa. Na Paraty daqueles tempos bebia-se muito e fazia-se nada além de conviver e viver a vida a beira mar, numa prainha que nem sei mais localizar. A amizade companheira – que é diferente de todas as outras amizades – juntava-nos; Carmelo,pintor; Camilo,cineasta; Zé,músico; Renan (ou Renê?), criador de ostras e nosso principal e único fornecedor. Além desses que vinham ocasionalmente, outros, mais assíduos, também participavam dessa amizade companheira; nosso Imperador, herdeiro do Trono que não terá,ainda jovem, que por lá tinha um negócio com bananas, e comigo, por uns tempos, uma amada com o lindo rosto de camafeu italiano, sempre presente, mais do que companheira, inesquecível, cujo nome está gravado numa folha de jasmim.
Penso que a Paraty dessa festa do livro, que aconteceu semana passada, seja outra em quase tudo; bem diferente. Talvez até melhor, mais confortável, com pousadas,restaurantes,telefone,internet,bancos, uma boa estrada e tudo o mais. Uma outra Parati; não mais aquela; de pouca música barulhenta,quadros e esculturas sem galerias,vendidos de porta em porta;representações teatrais mambembes e de livros que iam sendo escritos e colocados em algumas prateleiras de poucas casas e de nuvens brancas de felicidade iluminando nossas almas; se é que elas existem.
Essa semana de julho, a Festa Literária Internacional de Paraty, além de livros e de suas programações artísticas e culturais, apresentou uma novidade. Todas as mesas de encontros e debates foram transmitidas ao vivo pela internet e os vídeos e textos sobre os encontros na Tenda dos Autores e os bastidores da festa estão no canal do Youtube.
Não podendo estar lá assisti o que me interessou pela internet. E pensei sobre o que estava fazendo; distante e ao mesmo tempo presente. Uma presença virtual, em pequenas doses, é certo, porém a ausência total havia sido rompida definitivamente e, penso, para sempre.
Mais de 40 autores, alguns estrangeiros, e mais de 20 mil pessoas estiveram presentes em Paraty; pela internet, não se sabe quantos, mas acredito que possa ter sido o dobro, se não mais. Não importa. Entre os autores escolhi e acompanhei as falas de três deles. Pepetela, escritor angolano, cujo nome é Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, é também sociólogo e foi guerrilheiro no Movimento Popular de Libertação de Angola; quando o país conseguiu livras-se politicamente de Portugal, foi seu vice Ministro da Educação. Em l997 recebeu o Prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa, pelo conjunto de sua obra; já tem idade pra isso pois nasceu em 1941. Chimamanda Ngozi Adiche é nigeriana, ainda muito jovem, 30 anos, estudou na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos onde mora atualmente. São dois escritores africanos de gerações distantes, porém unidos por uma mesma relação com o continente. No debate dessa Mesa Literária, cujo tema foi os conflitos separatistas daquele continente e como isso tem influenciado em suas obras; e os rumos da literatura africana, que não são alentadores. Primeiro porque, disse Pepetela, “poucos jovens dominam suficientemente a língua para embarcarem nas leituras”. Além disso, os escritores africanos não se conhecem; como afirmou Chimamanda, e muitos de seus livros são publicados na Europa antes mesmo de serem lançados na África. Além dessas já conhecidas revelações, leram trechos de alguns de seus livros e nada mais de interessante nos deixaram esses dois escritores, cujos livros não os encontro. Sei que esses escritores africanos de duas gerações separadas por mais de 3 décadas, um homem branco, outro uma mulher negra, têm como tema de seus livros a mesma raiz que arrasa o continente africano: as desigualdades sociais e o racismo entre etnias tribais.
Outro escritor que acompanhei pela internet foi Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura da Universidade de Paris com sua estapafúrdia tese: “a apreciação de um livro não requer a sua leitura”. Esse autor francês propõe que não é preciso abrir um livro e nem mesmo sequer tê-lo para compreendê-lo. Basta ler as notas sobre eles, publicadas nos jornais e revistas, ele diz, e argumenta tudo isso no livro que escreveu “Como Falar dos Livros que Não Lemos”. Ora, para defender a absurda tese ele mesmo teve que escrever um livro! E terminou essa conversa fiada dizendo que “ao contrário do que escrevi no livro, sou um leitor feroz. Leio muito, o tempo inteiro.” Há um certo deboche nisso. Não perdi meu tempo ouvindo tudo isso porque meus espantos ainda não terminaram; muitos ainda virão e estou sempre atento. Porém, encerrei a sessão com as declarações do critico Marcelo Coelho, mediador dessa “mesa do espanto: “tenho que confessar que acabo adotando a quinta essência da distorção jornalística:leio um ou dois parágrafos e faço a análise”. Nem todos os críticos literários agem assim com esse destempero intelectual; e nem todos os críticos de outras artes. Que seja.
Diante disso restou-me o dilema: se dois escritores africanos lutam por mais leitores de livros em seus países - assim como os escritores brasileiros – e um professor de literatura e um crítico literário defendem a leitura apenas das notas que escrevem sem mesmo lerem os livros que criticam, mesmo que para isso tenha que escrever um livro, não podemos nos queixar da falta de leitores. Os que temos já nos bastam; são poucos, é verdade, mas existem e lêem os livros que escrevemos. Sejam eles impressos ou virtuais. E ainda sobre o efeito do espanto dou-me contas de que bobagens como essa em eventos literários, têm o efeito de um happy hour entre amigos e entre eles aquele sempre pandego a dizer tolices; relaxantes,divertidas,passam logo. Presentes a essa Mesa Literária estavam poucos leitores e muitos apreciadores de esquisitices. Tanto é que ao fazer a estulta declaração “a apreciação de um livro não requerer a sua leitura” a plateia inquietou-se; faziam gestos, sussurravam, cabeças voltavam-se para lá e para cá. Reclamavam apenas do som do microfone que estava muito baixo.
A festa acabou, desarmam-se as tendas e recolhem-se as sobras e os saldos. Paraty voltará logo ao normal, mas, certamente jamais ao que era; quando era pouco turística, menos famosa e não se falava tanta asneira.