EFEITO DUAS RODAS
Um dos grandes problemas que assola as metrópoles nos últimos tempos é o setor de transportes. São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte são exemplos claros de grandes cidades entupidas de carros e mais carros. Há tempos atrás, o fenômeno dos grandes congestionamentos recebeu o nome de “mexicanização”, uma infeliz alusão ao caos que tomou as ruas da “Cidade do México”, capital daquele país com mais de 11 milhões de habitantes. Curioso, mas o problema é quase universal, já que não são poucas as metrópoles, nas quais as autoridades estão a arrancar cabelos e dentes em busca de solução para o problema dos grandes e pequenos congestionamentos.
São Paulo tem optado pelo uso do metrô. Paris e outras capitais européias têm aberto campanha em favor das bicicletas. No Rio pouco se fez, a não ser tentar maquiar o modelo francês com abertura de ciclovias para a elite em uma cidade partida pela violência e má distribuição de renda. Em BH e Salvador a solução, aparentemente, “é abrir estradas”. Não existe sequer um consentimento entre os técnicos e doutores do saber das quatro rodas. O fato é que já são muitos os automóveis e, para quem sabe dirigir, um carro parece sempre uma boa idéia. Como o mercado não perdoa e não anda de mãos dadas com o bem comum: todos acham que podem ter e bancar um automóvel; afinal é possível pagar em muitas prestações e, na era da sociedade do consumo, na qual consumidor e cidadão se confundem um carro tornou-se, no mínimo, elemento de distinção e aparência.
A questão, no entanto, é outra. Como podemos identificar a “brasilinização” do trânsito? Acostumado com o transporte público, há tempos venho verificando o aumento das “abelhas assassinas”. Dito de outra forma: o grande número de motoqueiros e motoqueiras que andam a fazer curvas e mais curvas entre os carros. A questão é simples: perceba quando um sinal se fecha. Tal como as abelhas, em pouco tempo, você verá um enxame de motos se formando em frente à passagem do coitado do pedestre. Motores fracos e fortes roncam alto ante a iminência da abertura do sinal verde. E lá vão elas, em frente de todos disputando o primeiro, o segundo, o terceiro, quarto, quinto lugar. Novamente elas vão parar em um novo congestionamento. O efeito é fantástico. Novamente o dançar recomeça e no virar dali para lá e de lá para cá, as motos vão passando nos pequenos e grandes corredores deixados pelo transporte coletivo e pelos inúmeros automóveis que se aglomeram diante do sinal.
O fenômeno aponta para dois sinais: o primeiro, para a racionalidade dos motoqueiros. A moto é mais rápida e não fica estática no congestionamento. Apesar da pouca possibilidade de carregar mais de duas pessoas o que está em jogo é o tempo e a garantia de não ficar esperando nos congestionamentos. O segundo sinal é o mesmo que aponta o caso dos automóveis. Hoje, pode-se comprar uma moto tal como adquirimos roupas e imóveis, com a grande facilidade de serem mais baratas dos que os automóveis. Novamente caminhamos ao contrário do sabor do bem comum. Para sair do caos, nada como individualizar o problema e a moto é uma materialização disso. Com elas o fenômeno fica mais interessante, pois novas políticas públicas devem ser criadas e já se sabe o problema que se tornou os acidentes, as mortes e o uso ostensivo deste veículo na criminalidade. O efeito duas rodas é um sinal de que as autoridades estão apontando para o alvo errado.
É de domínio público que a solução de problemas de administração pública deve ser voltada e direcionada para o público. No caso do trânsito não é diferente. Para solucionar o problema, nada como investir no transporte público. Comentei acima o caso do metrô. Mas já sabemos da importância dos coletivos urbanos, dos transportes alternativos ou mesmo de novas formas de locomoção. É inatacável esta questão: sabemos, é claro, dos conchavos políticos com tais empresas ou mesmo do jogo dos valores das passagens. Mas não creio que, nos dias atuais, além do metrô encontremos outra saída que não seja a de melhorar o transporte público de quatro ou mais rodas.
É óbvio que não é a solução para os problemas, mas é o caminho. Difícil será convencer boa parte da população a deixar o carro em casa, a abandonar a vaidade de um lado e a sedução do mercado de outro. No Brasil, principalmente o automóvel, é símbolo de poder. Ele auxilia muito a mostrar o falo que não existe e a aparência perversa da maioria. É materializado no carro uma onipotência burra, uma felicidade inexistente e uma pseudoliberdade de ir e vir. Não vejo imbecilidade maior. O mesmo podendo-se dizer da alienação em torno dos veículos de duas ou mais rodas. O problema que é público torna-se privado. Temos uma elite que nunca utilizou o transporte público, se sente melhor que os outros e não vai se submeter a misturar com os outros. Entretanto, não deixará de ter três ou quatro carros em sua garagem (fato ocorrido no México e em São Paulo quando se levou a cabo a política do rodízio): um para cada filho e mais um para o cachorro. Por outro lado, temos uma grande massa desejosa de poder e não sabe que no seu direito de um transporte coletivo descente e rápido está a solução dos maiores problemas. Na solução individual do mercado, este consumidor se mete em duas rodas e prefere viver como uma abelha assassina, que, ao contrário da que conhecemos, se ferra com o próprio ferrão no primeiro erro daqueles que se gabam sobre as quatro rodas.
O trânsito é a materialização atual do estado hobbesiano: não existem ovelhas, há somente lobos. Por natureza, ganha o melhor ou o mais forte. No jogo das rodas, é sempre provável que o perdedor seja o que tem o número menor delas.