Tudo é amor

“Conhece-te a ti mesmo”

Oráculo de Delfos

3ª Parte: Aspectos da Personalidade

ou

Em busca de Deus como símbolo Sélfico

Tudo é amor

Quem já não ouviu aquelas histórias que contam que no instante de um assalto, o homem ou a mulher, ao invés de reagir com ódio, raiva ou excessivo medo, diz apenas, enquanto entrega seus pertences: “Que Deus lhe abençõe, meu filho!” – e então o aparentemente vil assaltante, perplexo, como se não pudesse compreender ou crer no que se passa, ou ainda tomado por uma emoção tamanha que o transpassa e o envolve, cai no choro, como uma criança que, esperando pelo pior castigo, recebe a luz do amor e do perdão?

É difícil averigüar aqui o quão raras ou o quão comuns são tais histórias; o quão verídicas ou o quão fantasiadas... Mas não vejo porquê não acreditar que elas de fato existem. Quantos pais e filhos não convivem com silêncios forçados, com emoções reprimidas, com afetos abafados, criando assim suas próprias armadilhas, oferecendo ao outro formas de amor que não podem ser sentidas e/ou reconhecidas de todo? O pai, frio e distante por algum motivo desconhecido, apenas oferece seu dinheiro como forma de amor ao filho, quando tudo o que este sempre quis foi apenas um abraço e um “Te amo!”. O pai, por sua vez, entende como uma retribuição a todos os benefícios materiais que ele concede, uma vida regular e honesta. Mas o filho, este não se envolve em qualquer coisa do seu cotidiano: é um aluno relapso, um extravagante nos atos e nos gastos. O pai briga com o filho: não compreende suas "loucas atitudes, sua ingratidão"; o filho, por sua vez, também discute com o pai, não compreendendo aquele profundo ódio que sente dentro de si, e que, quando só, volta-se todo contra sua própria pessoa. O pai se sente profundamente sozinho; o filho deseja sua própria morte. Até um dia em que, exausto de si próprio e de sua vida, o jovem ultrapassa todos os seus limites, indo parar na delegacia. O pai, enraivecido, vai buscá-lo, preparado para dar uma surra "naquele moleque" ali mesmo. Mas então, quando se vêem - quando os dois realmente se vêem -, como até então nunca em suas vidas havia ocorrido, algo desperta em seus corações. O pai não vê um irresponsável inconseqüênte atrás das grades, mas sim um coração desejoso de amor, de afeto, carinho e compreensão. E o filho não vê mais um homem frio e distante, mas sim um homem que, apesar de ter suas limitações, sempre o amou, que sempre o teve como uma das jóias de sua vida, e que sempre procurou oferecer do melhor para si – aquilo que seu pai nunca teve... Quando os dois se olham, naquela noite, ambos fragilizados, sem máscaras, nus – tudo se revela, brilhante e resplandecentemente. O filho buscava em sua dispendiosa vida o amor que não podia sentir nas atitudes do pai; e o pai, distante emocionalmente mas pródigo financeiramente, buscava assim defender-se de sua relação ausente com seu próprio pai, mantendo uma frágil ponte financeira que ele compreendia como sendo de alguém que se importava, como sendo de alguém que queria o melhor para a vida do filho. Naquela noite, após toda essa tempestade, pai e filho conseguem aquilo que sempre buscaram mas nunca haviam conseguido: abraçaram-se entre lágrimas, confessando-se, um ao outro, o quanto se amavam. E então o filho se abre para o pai, explicando e compreendendo tudo o que até então fizera; e o pai se abre para o filho, buscando no seu passado a chave para abrir os segredos das origens da própria relação que criou com seu filho. Provavelmente, tal noite foi a mais importante e profunda de suas vidas – e, com certeza, um momento em que ambos abandonaram uma parte dessa pesada carga que todos carregamos.

Bem, agora lhes pergunto: quanta raiva, quanto ódio, quanta indiferença, desprezo, apatia e intolerância, etc., não é apenas um reflexo, uma reação ao nosso desejo de mais e mais amor? Amor dos outros, amor do mundo, amor de nós para nós mesmos? Em essência, somos amor, puro e soberano amor. Nada mais. Mas, conforme vamos vivendo, vamos criando barreiras, abrindo fendas, levantando muros. Uma justiça sofrida, converte-se em dor, em mágoa, em ressentimento, até recair na amargura. Que, por sua vez, converte-se em um princípio de vida: “o mundo é injusto, sempre foi, sempre será”. Dessa maneira, a pessoa afunda em sua amargura e o seu coração é coberto de fel. E ela, a injustiçada de ontem, converte-se naquela que justamente cometerá a injustiça de amanhã, pois de sua amargura inicial (por falta de justiça, que é uma forma de amor, assim como a compreensão, o cuidado, a atenção, etc.), ela desenvolveu toda uma série de raivas, ódios, invejas, e por aí vai. Talvez tal pessoa consiga confessar-se para si mesma, em alguma noite solitária... em que tudo parece estar bem, apesar de seu coração pulsar sufocado dentro de seu peito. E então ela se pergunta: “como ser feliz?” Pois o fato é que ela acabou sendo enterrada viva por baixo de seus próprios sentimentos reativos.

O grande drama da vida é que muitos de nós só vamos aprender tais lições mais adiante, pois quando somos apenas crianças, pouco é o nosso controle espiritual sobre nós mesmos, sobre aquilo que sentimos e aquilo que fazemos. A criança, ou melhor, a pessoa que ainda não se desenvolveu espiritualmente, que não possui ainda a posse de certa parcela de suas faculdades, torna-se muito suscetível ao ambiente externo. Crianças, filhos de pais separados, que passam a acreditar que foram elas próprias que causaram a “destruição da família”, tudo porque foram desobedientes e fizeram papai e mamãe brigarem... É óbvio que uma separação conjugal é a quebra de um estado de amor para a criança, e como ela talvez não possa compreender ainda as reais razões e causas para tal acontecimento, ela joga e impõe o peso da culpa sobre si mesma. Não “perdoa a si mesma”. E assim cresce com raiva e com ódio. Buscando no mundo, aquilo que no fundo encontra-se em seu coração.

Quantas pessoas que não existem por aí que se apegam demasiadamente a cargos e funções, com tal força e de tal maneira que qualquer tentativa de mudança e transformação por terceiros, automaticamente é entendida como um ataque a si mesmas, a tudo o que fizeram e a tudo o que “sacrificaram”? Pessoas, em todos os lugares, se apegam a teorias, a sistemas, a cargos, a um status obtido, a um trabalho bem feito, tudo porque tais coisas, tais medalhas, diplomas, livros e papéis oferecem a eles algo para se orgulhar - algo que mostram a eles que são dignos de amor! “Veja como sou digno! Pago as contas e trabalho direitinho! Não sou igual a esses vagabundos que não fazem nada e ainda querem auxílio desemprego!” “Veja como sei do que estou falando. Já fiz tantos trabalhos, tenho tantos diplomas! Se minha mãe estivesse viva, certamente ela se orgulharia de mim, pois ela sempre gostou de pessoas estudiosas!” E então quando chega alguém e afirma que elas não são, realmente, tais coisas, tais teorias, tais sistemas, tais cargos e profissões, elas agridem, defendem-se com toda a força possível, com todos os argumentos que puderem enunciar. É o seu valor que está em jogo. É o amor que merecem, seja de quem for – Deus, pátria, família -, encarnada e estruturada nessas coisas: teorias, sistemas, funções, medalhas...

Sim, a arrogância é uma forma desesperada de defender uma posição tal que a pessoa possa aí achar-se digna de amor. Quando na verdade a luz e a chuva recaem sobre justos e injustos, indistintamente. A violência do assalto do garoto do início do texto era uma busca de amor, por mais paradoxal que isso possa parecer. A arrogância é o medo de perder aquilo que tal pessoa entende como essencial a sua vida – e ao que ela é –, inconsciente da verdade que só o amor pode constituir realmente alguém. E se a pessoa não encontra a fonte infinita de amor em si, inevitavelemente ela buscará fora, acompanhada de qualquer outro sentimento, sustentadada por qualquer outro princípio, manifestada por qualquer tipo de ato. É triste quando vemos alguém que acredita que se seu cabelo não está bem penteado e suas unhas bem pintadas e seus peitos bem erguidos, só por isso, não é mais digna de amor. Ela é feia, é desleixada, é descuidada – é uma porcaria mesmo que ninguém deveria olhar ou se importar... A busca por amor pode pintar-se com tintas verdadeiramente trágicas. Porque, como já foi dito nos textos anteriores, tenta-se apreender o inapreensível, segurar a água com os dedos da mão, manter para sempre aquilo que inevitavelmente irá escorrer, degenerar, transformar-se. Quando a pessoa passa a beber da fonte, ela se liberta de esperar a luz de um mundo que só pode oferecer ilusões. Aliás, é somente quando a pessoa passa a beber da fonte, que ela pode enxergar a vida tal como ela é. E foi isso o que fizeram os sábios e os santos de todas as tradições. Tomados pelo amor de Deus, destituídos da ilusão dos fenômenos e dos grilhões que nos prendem ao mundo, tais pessoas puderam enxergar todo este mundo de um lugar acima, apesar de ainda vivê-lo como um homem aparentemente comum. Mas com uma diferença essencial: a liberdade da auto-realização no amor os permitiam ir muito mais longe, fazer o que para os homens ainda presos aos conceitos, teorias, valores e ilusões da época social parecia impossível. Aquele que se vê inundado no amor divino se encontra bem acompanhado onde quer que esteja, no quer que esteja fazendo. Ele tomou para si o rumo de sua vida, pois não possui nada que o prenda e o direcione vindo do mundo. É claro que digo num plano ideal. Mas é que a diferença de atitude, de experiência e de sentimento de vida é tal, que seu posicionamento para aqueles que estão inseridos no mundo mais ordinário é de extremo distanciamento. No fundo, o que ocorre é que a pessoa liberta - ou em vias de libertação -, a pessoa que sustem-se com o amor que vem de seu coração, ganha a capacidade de ler, interpretar e usar cada símbolo, representação ou valor, conforme sua vontade e necessidade momentânea, pois ela não se prende a cada um desses objetos, ela vê além deles, seu olhar os atravessa. Usa-os não porque é dependente deles, mas porque a vida prática, no agir cotidiano, pede o uso de uma linguagem, de um objeto social, existente ou criado, que dê forma ao ato. Mas a pessoa que tem a fonte de amor interna aberta, não se apega a nada. Usa os objetos e os devolve calmamente. E como carrega a luz em seu coração, não possui a necessidade de aferrar-se possessivamente a qualquer coisa ou a qualquer pessoa. Pois sabe que tudo o que ela vive, tudo o que as coisas e pessoas signficam para ela, saiu emprestado, por assim dizer, de si mesma. Se alguém deixa de amá-la, ela não se sentirá um lixo por isso, pois ela sabe e ela se vivencia como amor. E então pode buscar com maior clareza as razões pelas quais alguma pessoa tenha deixado de amá-la... O que ela esperava ver, ter ou receber, que não foi satisfeito. E, quem sabe, como fazer com que tal pessoa veja, tenha e receba o que ela deveria buscar a princípio ou no fim em si própria, em seu coração.

São raros os bebês que não gostam de amor, de carinho, de afeto, de um sorriso - se é que há algum... Nascemos puros. Com a crença total de que receberemos amor, de que estamos imersos no amor. Mas como a vida é repleta de percalços, o novo ser vivo que veio ao mundo já cai num mundo de ilusões. E corre o risco de arrastar junto consigo toda uma parafernália daquilo que lhe serve de identidade exterior, formando-o ilusoriamente de fora para dentro, e não de dentro para fora, de seu coração para o mundo, de sua real necessidade e capacidade para um ambiente que o acolhe e o significa. No entanto, quanto mais maduros espiritualmente estamos, melhor podemos discernir o que é realmente do mundo e o que é de nosso coração - podendo assim fortalecer o que realmente somos, o que realmente devemos ou podemos ser. E quanto mais potencial interior tivermos, mais fortemente constituídos estaremos. Mais libertos, mais energizados, mais felizes. Mais plenos. O resto é um mar à deriva dos acontecimentos e dos fluxos da história. Sansara – o ciclo das ilusões. É claro que a coisa não é tão bipartida: aqui a liberdade, ali a escravidão. Vejo mais como um caminho, onde quanto mais próximo estamos de Deus, quanto mais próximos estamos daquilo que somos realmente, quanto mais próximos estamos de nossa realidade última ou primeira – que é o Amor - mais livres, mais fortes e iluminados nos tornamos. Creio que este seja o caminho para Deus – caminho que pode surgir e desabrochar por diferentes maneiras, através de diversos métodos. Mas uma coisa é certa: apenas o amor cria ou desvela mais amor, assim como apenas a luz finda com a escuridão. A evolução talvez termine quando pudermos reconhecer, sentir e viver todo o universo, ou, indo mais longe, a própria divindade dentro de nós. O amor que outrora estava encerrado e encapsulado em algum objeto ou algumas pessoas, em alguma teoria ou alguma posição social, retorna para sua origem, da mesma forma como as águas dos rios retornam para o oceano. Assim podemos ver tudo em nós e nós em tudo. Transcendemo-nos em nós mesmos pela ação do amor.

Pois somos amor. Vivemos no amor. Somos transpassados pelo amor.

No fundo, tudo é amor.

*

Este é o caminho para a busca de Deus como símbolo Sélfico. O qual representa e existe como a potencialidade latente de tudo o que poderemos manifestar no mundo. A busca amorosa por mais e mais amor constitui uma viagem infinita para o âmago do si-mesmo - e de tudo o que daí pode nascer. Permanecer aprisionado por conceitos, idéias, sentimentos e lembranças é resistir a esse divino chamado - que não apenas é o chamado pessoal, o dever que toda pessoa tem consigo mesma e com as demais, como também é aferrar-se a uma vida sem sentido, uma vida de lamento e auto-piedade, de ilusão e desordem, podendo chegar a níveis altíssimos de violência, até resultar na morte.

A busca de Deus como símbolo Sélfico nos torna mais livres, mais centrados, mais próprios. Senhores de nós mesmos, ganhamos sustentação suficiente para nos relativizarmos, e, assim, sempre transcender nossos próprios afetos e pensamentos. A busca de Deus como símbolo Sélfico, como a mais pura das Verdades Íntimas, traz para si capacidades cada vez maiores das demais buscas: como a busca da Verdade Absoluta e a busca do Todo. Pois quanto mais nos reconhecemos como amor, ou melhor dizendo, como Amor (livre e incondicional, auto-existente e puro), mais harmonizados e unos estamos, e mais harmonia e unidade desejaremos no mundo. Não a unidade do autoritarismo, mas sim a unidade de Deus, que apesar de transcender todo o Cosmos, ainda assim não atenta contra a liberdade de cada um de nós. Um amor de espera, de expectativa, de esperança, de abnegação, de compreensão, de busca, de desejo de mais luz. E também, quanto mais nos experimentamos como amor, mais livres nos tornamos dos elementos do mundo, podendo transitar por cada um deles, reconhecendo que no fundo não passam de um jogo de imagens a nos impulsionar para mais e mais amor - uma escada espiralada para o âmago de nosso ser - que é Deus -, que é o que há de mais Real em nossa alma e neste mundo, mesmo que alguns possam considerar Deus como apenas uma idéia. Trata-se aqui da mais pura e mais real das idéias, pois todas não passam de reflexo Dela e trajeto para Ela. Para que no final - e mesmo até antes - sequer necessitemos de seu aspecto como idéia para que possamos experimentá-La. Deus apenas é - antes e além de tudo o que podemos conceber, sentir ou imaginar.

Quem alcança a consciência da essência amorosa do seu Ser, não tem outra coisa a fazer neste mundo a não ser tentar mostrar aos demais a essência amorosa que os mantém, que os sustenta, que os constitui - e, por outro lado, todas as ilusões criadas e engendradas por medo de não terem esse amor que no fundo existe como um manancial em seus próprios corações. As pessoas que se apegam guardam avaramente a chave de ouro que poderia abrir um infinito tesouro de luz e amor.

Para ser mais exato, quanto mais próximos estivermos de nosso espírito, harmonizados com nossa essência - que nasce e se desenvolve gradualmente do amor ao Amor, passando por inúmeros tipos e gêneros de amor -, mais estaremos em conexão com o Todo, e mais e mais amorosamente estaremos envolvidos com o Mundo, buscando refletir no mundo exterior e em cada coração que passa por nossas vidas todo o potencial de amor e de harmonia que podemos manifestar. A evolução prossegue para o Amor e para a Harmonia em todos os âmbitos: no interno e no externo, no individual e no cósmico. Um santo quando se ilumina, desce de onde está para trazer um pouco de sua luz para os demais, um pouco de seu amor, um pouco de sua paz. Quanto mais a alma está desperta, mais ela age para despertar a consciência divina nos seus semelhantes.

E assim prosseguimos do relativo ao Absoluto, do particular para o coletivo (que não nega o particular, mas o afirma conjuntamente), dos diversos sentimentos para o Amor, dos vários princípios para aquele único que criou, que sustenta e que finalizará toda a ação do Cosmos, tanto o interno (o self), como o externo (o Self de Deus): que é o Amor. Quando chegar o momento em que todos estiverem no seio de Deus, tudo o que existirá será o Amor. Único e soberano.

Ao menos é o que posso especular com a quantia de verdade que tenho nas mãos, e com o potencial de amor que posso traduzir em palavras.

O mais é o Mistério - que também é uma forma de Amor.

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