O INFERNO DO SELF

Certa feita, há mais de 100 anos, um escritor irlandês, polêmico, desafiador, e sobretudo, sagaz, disse: “cada um de nós carrega em si o céu e o inferno”. O Inferno está em cada um de nós. Num primeiro momento, aos leitores mais desatentos, pode parecer uma afirmação absurda e até herege, mas pensemos juntos: temos a incrível capacidade de superestimar problemas e minimizar conquistas; partindo desse pressuposto, o que impede que esta afirmação esteja correta?

Um amor que se foi, um emprego que se perdeu, uma chance que supostamente não irá voltar: situações em que o Inferno nasce. A aversão e descrença em relação aos sentimentos sinceros de outras pessoas, a certeza de que o mundo é injusto, e a convicção de que você serve apenas como fantoche do destino: assim o Inferno se desenvolve. A mais absoluta solidão, o amargor em desconfiar de tudo e todos, a total inércia em relação à sua vida: assim o Inferno se consuma.

Muitos sofrem, lamentam-se, indagam o porquê de serem tão infelizes, enquanto outros procuram a solução mais “prática, fácil e definitiva”, em suas toscas opiniões delirantes: o suicídio. Será que nós, na condição de seres humanos, autoproclamados seres racionais, temos tão poucas alternativas assim para enfrentar nossos problemas de ordem emocional? Acredito que não. Alguém já disse que criamos nosso próprio deserto e nos queixamos da falta de oásis: aí está o ponto chave de boa parte das tragédias humanas, sejam fictícias ou reais.

Quando o inglês William Sheakspeare, em seu célebre “Romeu e Julieta”, descreveu o sentimento de perda do protagonista de sua estória, ao acreditar que sua amada havia morrido, certamente baseou-se no fato de que somos suscetíveis as nossas emoções, e na mesma proporção, dependentes delas.

Amar é uma dádiva que poucos realmente conhecem, ao tempo em que apaixonar-se é um martírio pelo qual todos nós passamos em algum momento de nossa existência. Mas na confusão prática e conceitual que ocorre entre estes sentimentos, e nos fatos que a antecedem, é onde podemos encontrar as respostas para os sofrimentos de boa parte dos malogros sentimentais da humanidade.

Quando se está apaixonado, poucas são as atividades que conseguimos desempenhar, devido ao entusiasmo excessivo que temos em relação ao outro, tal é a vagareza com a qual o tempo teima em passar. Quando amamos, agimos pensando na reação, na satisfação e na felicidade do outro. Cada momento a dois serve, entre outras coisas, como escape para problemas cotidianos, para nos sentirmos quistos, protegidos, e, literalmente, amados. Na mesma medida (pelos menos em tese), tentamos retribuir a satisfação, segurança e apoio. Os Infernos nascem quando uma das partes esquece ou não conhece essa reciprocidade.

Amar sem ser amado, dar sem receber em troca; a arte, desde que foi introduzida na vida dos povos, tenta retratar fidedignamente o que acontece aos corações que passam por tais experiências: músicas, sonetos, poemas, quadros, filmes, entre tantas expressões artísticas, talvez tenham chegado próximo, mas nunca terão a essência da dor e desamparo que um amante sente ao perceber a rejeição ou assimetria com o objeto de sua afeição. Por outro lado, temos os obsessivos, que vêem em outra pessoa a razão primeira de seus dias. Estes criam, desenvolvem e consumam seus Infernos com rapidez espantosa. Geralmente (mas não sempre), são pessoas que nunca ou raramente conheceram traços de afeição no seio familiar e/ou no convívio com terceiros.

O escritor citado no inicio deste artigo, amou o tanto que lhe permitiram amar; amou a arte em todas as suas formas, amou pegajosamente a vida, e sôfregamente a outrem, que por não conhecer fagulha sequer de um sentimento nobre e puro, não correspondeu à altura a um amor tão puro e desprovido de malícia. Este escritor amou de uma forma corajosa, pode-se dizer sem medo de exagero, até heróica. E esse amor abriu as portas para o Inferno que o tragaria pouco tempo depois. Seu nome era Oscar Finghal O’Flarhertie Wills Wilde, ou simplesmente Oscar Wilde.

A vida deste renomado escritor sempre esteve entre o glamour e a dor, a glória e a execração pública, o amor e a repulsa. Mais especificamente, em relação à sua conturbada vida amorosa, fatos que aos olhos das Sociedades ditas modernas de hoje podem parecer - e realmente foram- de uma atrocidade e primitividade repugnantes.

Wilde era homossexual, um Dândi* desafiando o Estado (a Inglaterra) e a Sociedade que, à época (1895) despontava como a maior potência do mundo ocidental; todavia, a magnitude deste Estado e a força desta Sociedade, não o amedrontaram - ao contrário-, servindo de estímulo para seguir adiante com suas convicções e desejos. Wilde foi preso em 1895, acusado de “crimes contra pessoas do sexo masculino” ou alguma bobagem que o valha, e condenado a dois anos de trabalhos forçados apenas por ter nutrido uma forma de amor "proibido e ultrajante” no provinciano e hipócrita (como todo provincianismo o é) entendimento da sociedade londrina da época.

O fato de interesse, após este breve resumo do Inferno deste grande escritor, é que mesmo após todas as provações que passou na prisão, vendo companheiros serem mortos – o que deu origem à Balada do Cárcere de Reading, onde conta por meio de sonetos, sua experiência nesta prisão inglesa, e ao De Profundis -, apesar da execração pública devido ao escândalo, da morte de sua mãe enquanto ainda estava preso em Reading, do total abandono do objeto de seu amor não-correspondido, em momento algum desistiu de buscar sua tão decantada e desejada felicidade - fosse por meio da arte, do prazer, ou do amor aos dois- , até que sua chama se esvaísse, no dia 30 de novembro do ano de 1900.

Temos muito a aprender com este e outros grandes personagens que figuram na história mundial, seja nas artes, nas ciências ou no que se refere a alguma forma de espiritualidade. Aprender que nada melhor que um dia após o outro, e que tudo que desejamos, pode ou não ser realizado, que nossa vontade é fator determinante para o sucesso ou fracasso de nossas empreitadas.

Pensemos nisso na próxima vez que o céu nos parecer distante demais para desejarmos levantar vôo, quando nossos olhos estiverem mareados com lágrimas inúteis que não trazem solução alguma, e quando estivermos carentes de atenção, carinho, mas sobretudo, de amor-próprio.

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*S.m., Homem que se veste com muito aprumo; janota; almofadinha; pachola. (Adaptado do inglês dandy)

Gustavo Marinho
Enviado por Gustavo Marinho em 28/01/2006
Reeditado em 05/07/2011
Código do texto: T105129
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