O Efeito Morte
Luciano Fortunato Silveira
“Você vai morrer e não vai pro céu;
É bom aprender: a vida é cruel”
(Homem Primata –
do disco “Cabeça Dinossauro”, 1986 / Titãs)
“Filosofar é aprender a morrer”.
(– Montaigne)
Numa recente entrevista a um jornal televisivo matinal, em ocasião do seu aniversário de cem anos, Oscar Niemeyer, ateu, responde à inconveniente pergunta do repórter, que dizia “a morte não lhe assusta?”. Niemeyer responde “a morte é uma coisa natural da vida. É melhor levar a vida sem pensar muito nisso. E é até uma coisa meio animal o que vou te dizer, mas, como dizia o Darcy Ribeiro, a vida tem que ser assim: uma mulher do lado – porque mulher é importante – e seja o que deus quiser”.
A postura de José Saramago, também ateu, ao escrever o seu livro "As Intermitências da Morte" parece ser, numa análise superficial, exatamente o contrário da de Niemeyer. Saramago lança As Intermitências... no alto dos seus oitenta e seis anos de idade, tratando o assunto “morte” de frente, com sarcasmo e atitude filosófica. O livro é uma fábula sobre a morte, abordando com efeito alucinante, e ao mesmo tempo expondo a grande sobriedade do autor, temas como religião e sociedade. A história se passa num país onde a morte “suspendeu suas atividades”. Antes de qualquer análise, vejamos alguns trechos do livro:
Intermitência. s. f. 1. interrupção momentânea, intervalo (Aurélio).
“Ano novo, vida nova.”
“Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja.”
“Questão de ponto de vista, eminência, talvez lá de fora nos estejam a olhar como um oásis, um jardim, um paraíso, Ou um inferno, se forem inteligentes.”
“Se o cardeal morresse durante a operação de apendicite, isso significaria que teria, paradoxalmente, vencido a morte.”
“Que vamos fazer com os velhos.”
“O rosto enrugando-se, prega a prega, igual que uma uva passa, os membros trêmulos e duvidosos, como um barco que inutilmente andasse à procura da bússola que lhe tenha caído ao mar”.
“Toda a história santa termina inevitavelmente num beco sem saída”.
“As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes demos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca”.
“Por nossa parte, igreja católica, apostólica e romana, organizaremos uma campanha nacional de orações para rogar a deus que providencie o regresso da morte o mais rapidamente possível a fim de poupar a pobre humanidade aos piores horrores”.
“...oferecer a estes seres humanos que tanto me detestam uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre”.
“...a morte não respeita a gramática”.
“Um dia virão a saber o que é a Morte com letra maiúscula”.
“...a (idéia de que a) morte seria um superior hierárquico de deus, torturava em surdina as mentes e os corações do santo instituto”.
“No seu quarto de hotel, a morte, despida, está parada diante do espelho: não sabe quem é”.
Uma pergunta que se pode extrair sobre a motivação de Saramago para escrever o livro é “teria sido a obra uma tentativa de amenizar os efeitos devastadores de idéia da morte definitiva para alguém que não acredita em uma vida depois dela?”. Possivelmente a resposta seja sim. Diante do posicionamento público de José Saramago, podemos considerá-lo um tipo de “ateu militante”. E o livro em questão seria um tipo de instrumento dessa militância. Pode-se dizer que uma pessoa que está próxima dos noventa anos, está, com isso, próxima da morte. Nisso, o livro se põe como uma espécie de tratado sobre o “problema da morte”. E também com um tipo de “consolo intelectual”, seja isso algo honesto ou não. Enquanto as religiões consolam o homem diante da angústia da finitude, dizendo a ele que ele terá uma vida eterna, os descrentes nessa promessa ficam à mercê das mais variadas conjecturas. A atitude racional parece não resolver o problema da morte, coisa que as religiões sempre conseguiram fazer, em maior ou menor grau.
Contudo, seja entre religiosos ou não religiosos, entre crentes e ateus, o tema “morte” é normalmente evitado. É como se evitássemos tocar em algo que não podemos resolver ou explicar com clareza. A palavra “morte” é de pronúncia proibida em alguns lares mais conservadores em várias partes do Brasil e do mundo. Assim como ocorre com a palavra “câncer”. E poucos percebem que quando se evita a pronúncia de “morte”, se está fazendo o mesmo que faziam os antigos hebreus que não pronunciavam o nome de deus. A cultura da “não-pronúncia” do nome divino está no decálogo de Moisés e está também em outras religiões antigas, monoteístas ou não. Desta forma, ao se evitar o assunto e a palavra morte, se está, inconscientemente, tornando-a um deus.
Saramago, no entanto, de forma surpreendentemente serena, não só aborda o tema de forma provocante, como dedica-se a escrever uma fábula, que é o livro As Intermitências da Morte. No livro, o autor faz uma brincadeira com a questão do paraíso bíblico, o lugar da vida eterna, trazendo esta para o seu país fictício, porém terreno, de forma a explicitar o paradoxo de se desejar algo com o qual, definitivamente, não estamos preparados e não saberíamos lidar: a vida eterna. Em vez de evitar o tema, o homem velho Saramago o encara de forma direta e, sem apresentar soluções, suaviza sua angústia de ateu diante do fim, tomando para si a idéia de que a eternidade do ser não seria melhor que o seu ocaso.
Nas monumentais últimas páginas do livro, o autor rende-se, no entanto, ao sonho e a um profundo lirismo, e, despindo-se da ironia que permeia muitas das paginas anteriores, faz com que a sua personagem principal, a morte, seja vencida pelo amor e seja, assim, humanizada. Os ateus também amam.
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Num plágio ao livro de Saramago, escrevi um conto para participar de uma seleção do jornal O Estado de São Paulo, comemorando os cinqüenta anos da Bossa Nova. O critério era que fossem mini-contos que contivessem, em alguma parte do texto a frase “não quero mais esse negócio de você longe de mim”, da canção Chega de Saudade, considerada o marco inicial da Bossa Nova. O meu conto é intitulado “Eu, João e a Morte”. É assim:
“Embora eu não seja muito fã de jogos, nada tenho contra aquele lance já clássico de jogar xadrez com a morte. Ainda mais que conheço alguns macetes deste sinistro jogo. Pior seria baralho. Pois em se tratando de cartas a sorte fala mais alto. E a sorte, como se sabe, é parente em primeiro grau da Senhorita Morte, a grande dama, a deusa que todos cultuam, normalmente sem saber. Entre xadrez e cartas, chegamos eu e ela a um consenso: dominó.
No meu cafofo subterrâneo, com os comuns e periódicos tremores causados pelo metrô bem ao lado, na pequena sala iluminada por uma cansativa lâmpada fluorescente econômica, fui eu ao canto onde fica minha jukebox antiga, claro, com duzentos e cinqüenta compactos antigos, claro, no seu interior. Na excêntrica máquina – meu único objeto de valor, além das cabeças de pedra-pomes vindas da Toscana – vários discos de rock’n’roll, algum jazz, uns standards, e ali no meio, o único disco de música brasileira, um compacto de João Gilberto cantando “Chega de saudade”. Tantos discos de rock pro bracinho automático pegar e ele me pega justamente o único disco produzido no hemisfério sul. É a sorte. Então minha adversária me perguntou que música era aquela – e as pedras de dominó já despejadas na mesa. Ela, tão habituada com roqueiros suicidas, não conhecia a Bossa Nova. E eu que pensei que o estilo fosse mais conhecido no nosso globo, e talvez até fora dele, respondo a ela: isso é bossa nova, é muito natural, e me espanta que você não conheça.
Começamos o jogo. Antes da máquina começar o “roquenrou” por vir, os alto-falantes da minha querida máquina encantada começam a esvaziar da sala o samba de João, que canta os últimos versos da canção, “não quero mais esse negócio de você longe de mim”. Vivo, venci a primeira partida. Acho que João salvou minha vida.”
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