TRIBUTO A UM IMPRESCINDÍVEL: D. PAULO EVARISTO ARNS
Por: Celso Lungaretti
"Há homens que lutam um dia, e são bons;
há outros que lutam um ano, e são melhores;
há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons.
Porém há os que lutam toda a vida,
esses são os imprescindíveis."
(Bertolt Brecht, “Os Que Lutam”)
A grande imprensa só destaca os personagens quando eles estão realizando coisas, completando décadas disso e daquilo ou morrendo. Vai daí que um homem como D. Paulo Evaristo Arns está há 10 anos longe dos holofotes e é quase desconhecido das novas gerações.
Pior: alguns jovens formam seu conceito sobre ele a partir do que lêem nos textos repulsivos da propaganda neo-integralista, apontando-o como principal inspirador da política de direitos humanos “que só protege os bandidos”...
Então, em vez de esperar que surja o que os jornalistas chamamos de gancho, uma justificativa qualquer para falar de D. Paulo, vou fazê-lo unicamente porque se trata de um daqueles imprescindíveis a que se referiu Brecht. Neste Brasil da ganância e da competição que o capitalismo globalizado está engendrando, é fundamental evocarmos exemplos como este, até como antídoto.
Cardeal e arcebispo emérito de São Paulo, D. Paulo está com 87 anos, é um homem combalido e tem problemas de audição – decorrentes, esclarece, de ferimentos sofridos quando de uma tentativa de seqüestro num país latino-americano (pretendiam obter, em troca, a liberdade de um chefão do narcotráfico).
A entrevista que fiz há algum tempo com D. Paulo permanece atual, daí eu estar reproduzindo aqui seus principais trechos. Não quis privar os leitores da oportunidade de conhecer-lhe a história a partir de suas próprias palavras, que tive o privilégio de escutar numa ensolarada tarde de dia útil, no convento franciscano que fica ao lado da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
No final, apesar de sua dificuldade de locomoção, fez questão de percorrer comigo o longo caminho até o corredor. E se despediu com uma frase marcante: "Precisamos contar essas histórias [do que aconteceu neste país durante a ditadura militar] às novas gerações. É importante que elas saibam de tudo isso!".
A missão do educador – Muitos programas pioneiros, na linha da inserção social, foram introduzidos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) entre novembro/1970 e maio/1998, período em que, como arcebispo metropolitano de São Paulo, D. Paulo foi Grão Chanceler da instituição.
Logo que se tornou o principal responsável pelos rumos dessa universidade, D. Paulo fez primeira visita ao Conselho da PUC. E disse: "Não quero uma escola de 2º grau melhorada. O que me interessa é que vocês façam uma pós que dê bons professores para todos os lugares do Brasil; e que todas as teses e tudo o que vocês discutirem além da escola se refira ao povo e ajude o povo. Que isso seja a norma daqui para a frente".
Os resultados não tardaram, diz D. Paulo. "A Arquidiocese se organizou em pastorais diferentes – p. ex., a Operária, a da Terra, a do Trabalhador –, então eu consegui que a Faculdade de Direito se interessasse em ir, durante a semana ou no sábado, à periferia e ver como se poderia ajudar essa população e quais os problemas reais da periferia. A mesma coisa aconteceu com a assistência social, que, aliás, está trabalhando nessa linha até hoje, com métodos sempre novos e recebendo apoio da Europa e de outros lugares, com uma eficiência muito grande."
Hoje, essas iniciativas pioneiras da PUC/SP encontraram muitos seguidores e há um sem-número de empresas e instituições esforçando-se para dar uma contribuição positiva à sociedade.
Ofícios para vítimas da ditadura – "Os estudantes da USP me procuraram em 1973 quando um colega [Alexandre Vannucchi Leme] foi assassinado pelos órgãos de segurança. Os estudantes se reuniram, uns 10 mil, e mandarem representantes à minha casa, à noite, para que eu fosse lá falar aos alunos. Eu disse que era melhor reunir os estudantes, mas não dava para fazer no campus da universidade, porque ele estava cercado por policiais e oficiais do Exército.
Missa de 7º dia de Vladimir Herzog – Foi celebrada na Catedral da Sé, simultaneamente, por religiosos de três confissões: a católica (D. Paulo), a judaica (rabino Henry Sobel) e a protestante (reverendo James Wright).
[Modesto, D. Paulo evitou comentar que sua decisão foi um ato de enorme coragem. Primeiramente, porque a alta hierarquia católica não viu com simpatia sua iniciativa de oficiar missa ao lado de um rabino e de um reverendo. Depois, por ser um desafio frontal à ditadura militar, que o presidente Geisel engoliu, pedindo apenas a D. Paulo que segurasse seus radicais, “enquanto eu seguro os meus”. Finalmente, por ter, em nome de ideal de justiça e solidariedade cristãs, corrido o risco da ocorrência de tumultos e mortes que teriam um peso devastador em sua consciência de religioso. Graças a ele, foi viabilizado o ato que acabou se tornando um divisor de águas: a partir dessa vitória sobre a intimidação, a ditadura começou sua lenta, mas irreversível, marcha para o fim.]
Invasão da PUC em 1977 – "Eu estava em Roma quando o Erasmo Dias, então secretário da Segurança do estado de São Paulo, invadiu a PUC sem dizer ou ter motivo nenhum. Os estudantes estavam em exame e os policiais destruíram mais de 2 mil cópias de documentos, estragaram o refeitório, danificaram os instrumentos musicais e até derrubaram um professor no chão.
Eleição direta para reitor da PUC – "No início dos anos 80, nós queríamos nos opor ao regime totalitário que estava vigorando no Brasil e provar que funcionários, professores e alunos são igualmente capazes de escolher o diretor, o reitor ou o presidente da instituição.
Contratação de professores perseguidos – "O minstro da Justiça ordenou a expulsão de vários professores da Universidade de São Paulo. Então a reitora da PUC me telefonou perguntando se podia admiti-los entre nós. Eu disse: 'Não só pode como deve, porque são excelentes professores e patriotas'.
Convicções e esperanças – Sobre o Governo Lula, antes mesmo da crise do mensalão, D. Paulo já mostrava uma ponta de apreensão, ao se dizer esperançoso de que “o Brasil não perca esta ocasião e não afunde o barco em vez de conduzi-lo a uma margem da terra onde haja outra terra e outro céu, como diria a Sagrada Escritura; onde haja outra possibilidade de sonhar e outra possibilidade de viver com dignidade, mas para todas as pessoas e não só para uma parte".
E, inquirido sobre o menor engajamento atual da Igreja às causas sociais, ele finalizou com uma mensagem de esperança: "A Igreja é o povo. Se o povo se mobiliza bem, a Igreja também se mobiliza. Então, é preciso unir esses dois conceitos, o povo de Deus e o povo, simplesmente. Nós precisamos caminhar para a fraternidade, para uma possibilidade de todos serem respeitados como filhos de Deus e irmãos uns dos outros".
Não há como retratar a grandeza de um D. Paulo Evaristo Arns numa única entrevista. Faltou dizer, p. ex., que ele criou a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo e foi o grande artífice do projeto Brasil: Nunca Mais (livro-levantamento dos casos de violações de direitos humanos durante o regime militar), integrando também o movimento Tortura Nunca Mais, dele decorrente.
O principal, no entanto, é que suas gestões junto às autoridades salvaram a vida e evitaram a tortura de resistentes, no pior momento da ditadura.
Fiel ao espírito da igreja das catacumbas, foi o pastor que tudo fez para que seu rebanho sobrevivesse a um tempo de lobos. Um imprescindível.
Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista e escritor.
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