OS TROTES: BRINCADEIRAS OU MANIFESTAÇÕES DE PODER?
É comum nas universidades e nos colégios especializados a prática de rituais de iniciação impostos aos estudantes novatos. Esses estudantes são vulgarmente denominados de “calouros” e os rituais a que nos referimos são chamados de trotes. Essas troças, na grande maioria das vezes, são vistas como simples atividades lúdicas.
No entanto, tais atos são sempre revestidos de atitudes que implicam em humilhação e até prática de violência – há registros de lesões e até mesmo de mortes decorrentes dessas “brincadeiras”. O estudante “veterano” que pratica o trote quase sempre se comporta de maneira arrogante e autoritária (ainda que supostamente a título de representação). Ele encarna um personagem cruel, implacável, insensível e cínico. O que parece ser um simples jogo de entretenimento ou comemoração é, na verdade, uma manifestação de poder que envolve questões profundas relativas ao íntimo do ser humano.
Os trotes guardam uma certa semelhança com as instruções militares em que os superiores hierárquicos expõem os subordinados a situações estressantes e vexatórias. Tratam de maneira rude e não raro costumam empregar expressões pejorativas e ofensivas no tratamento a quem é direcionada a instrução. É quando se define de forma inequívoca as figuras de quem controla e quem é controlado – base ideológica bipolar das relações capitalistas.
O ímpeto que move um trote é o mesmo que leva um político a se comportar como se fosse patrão dos eleitores ou como se fosse dono da coisa pública. É o mesmo que leva um pai a bater num filho ou um policial a torturar um prisioneiro, sob o pretexto de correção. Trata-se de uma busca desesperada de se preencher um vazio íntimo – sentimento de insegurança manifesto ou em potencial. Os trotes, no somatório, constituem uma expressão simbólica daquilo que é a essência de uma sociedade hierarquizada – a idéia de poder (neste caso, leia-se conhecimentos), expressa na velha indagação: “sabe com quem você está falando?”.
Na sociedade capitalista o valor de cada indivíduo está vinculado ao valor pecuniário dos bens materiais que possui e a ascensão social se dá proporcionalmente a tais valores. Os status e papéis sociais daqueles que dispõem de meios materiais para ocupar posição de destaque dentro do processo econômico são dotados de maior prestígio. Destarte, o “calouro”, humilhado e até torturado, aceita tudo por entender que aquele ritual representa-lhe mobilidade vertical ascendente, ou seja, o ingresso num ambiente que lhe proporcionará ascensão social ou definição do seu espaço no seu grupo familiar e social.
Ele passa a se sentir diferente dos outros que ocupavam sua mesma posição anterior e não conseguiram vencer a barreira do vestibular; consciente ou não, sentir-se-á hierarquicamente superior a estes. Por outro lado se sentirá inferior aos “veteranos”, guardadas as proporções para as séries (ou períodos) que cada um cursa. No vestibular seguinte se sentirá superior aos novatos que estarão chegando.
A hierarquia é estabelecida, tacitamente, também entre os cursos (universitários ou técnicos de nível médio): quanto maior a possibilidade de ascensão social pelo profissional formado por um curso, maior é o prestígio atribuído ao estudante da área e, nesses casos, também são mais freqüentes e mais intensos os trotes aos “calouros”.