Era do Gelo
Era do Gelo
(Subtítulo: Entre outras e entre o 1 e o 2).
Porque eles tiveram de continuar convivendo entre os dois episódios, certo? Um mamute, um tigre e uma preguiça. Espiritualmente dizendo, a preguiça tem um poder volitivo incontestável. Apesar de sofrer de incontinência verbal - não é uma doença rara - e na verdade sofrem mais os que estão perto, acho até que ela administra bem a doença. Mas onde ela dá um show do “ser posto em si mesmo”, e de invulnerabilidade, é quando ela conta, (no 1), que a família deixou-a amarrada e amordaçada, e em cativeiro, que todos fugiram e ainda por cima se deram ao trabalho de apagar as pegadas. Pois ela segue em frente. Muita gente, se passasse por uma crueldade dessas, (inclusive eu), já se tornaria candidato perpétuo ao divã ou ao fim extremo. A preguiça não. Persistente em se manter viva, e de bom humor,(porque vivo de mau humor é um saco), falando pelos cotovelos, sofrendo toda sorte de ameaças, sendo perseguida a todo instante, alvo de chacotas, de escárnio e desprezo, mas não se abala. Dá até pra exclamar: impávido colosso. O 1 encerra com a lição máxima: temos de cuidar uns dos outros, porque vivemos juntos. São, portanto, uma família. Imagine. Um mamute, um tigre, uma preguiça.
O livro “Famílias: reflexões e possibilidades”, publicação conjunta da prefeitura de Sampa e a Unisa, (2005), além de uma aula de assistência social, posto que escrito por assistentes sociais, além de um documento recente sobre a zona sul paulistana, imensa e carente, além de evidenciar que os redatores sabem do que estão falando, porque arregaçaram as mangas e se embrenharam em território que é quase um faroeste, para se inteirar como vivem os habitantes, equacionar um estudo e propor soluções, além do que, tem um trecho interessantíssimo sobre famílias. Trata-se do óbvio e ululante, que o mundo oficial finge não existir. Trata-se de relatar que família não pode mais ser encarada como uma célula papai, mamãe e filhinhos, mas antes, e acima de tudo, como uma célula híbrida, heterogênea, onde, para se chegar em qualquer conclusão, o que não vale é preconceito. Porque ao invés de papai você pode achar um bêbado, ao invés de filhinho pode ser um aviãozinho que já cheirou 2 galáxias inteiras, mamãe pode não ser mamãe, e quando é, é a heroína de plantão, os filhos podem ser enteados e sobrinhos,
ou adotados e de outra raça, as tias podem ser 4 e nem ser tias, uma já é avó aos 32, os tios podem ser primos de uma das tias que já faleceu, mas é melhor chamá-los de tios, porque eles não vão partir, e as variações são de fato infinitas. Tão infinitas que chegamos numa casa onde moram um mamute, um tigre e uma preguiça. E a aparente harmonia daquela casa deve-se ao fato de que eles se aceitam. E isso me parece claro.
Como é que se muda um mamute? Pedindo para ele se transformar numa gazela? Ele pode, até com muito boa vontade, se esforçar para isso. Mas para ele será uma violência. Porque essa é uma modalidade de violência, quando a pessoa se inflige um mal tamanho, silenciosamente, para ser aceita pelos demais. Procura uma metamorfose inalcançável, por medo, por baixa auto estima, e a violência duplica quando os outros percebem mas não se manifestam, pela conveniência desse estado, pelo poder que então detém ao lidar com um ser que está pela metade, não é um mamute e não é uma gazela, está pela metade, e quando assim, fica-se em desvantagem.
Na história “narrada” por George Roy Hill, sobre Butch Cassidy e Sundance Kid, Sundance é um exímio atirador, o verdadeiro ás no gatilho. Só que tem um problema: se colocar o revolver na mão dele e dizer: atira, ele não consegue acertar nem o próprio pé. Ele tem que sacar a arma do coldre. Aí ele não erra uma. Porque é como ele funciona. Um mamute funciona como um mamute. O mamute do Era do Gelo tem um coração de ouro, mas é rabugento. Se ele não cismar de pisotear os companheiros, pode ser possível e até agradável conviver com ele. Se estiver flatulento deve ser difícil. Mas é um momento, isso passa. Tolerância, quando deixa de ser uma palavra e se torna ação, é quase um milagre, quando na verdade deveria ser a ordem do dia. O caso é que, observar como o “ente querido” funciona e se amoldar a isso, desde que não estejamos tratando de aberrações, é missão de cada um. Porque todo mundo tem uma maneira muito particular de funcionar.
Butch Cassidy usava um coldre mas nunca dera um tiro na vida. Sundance não sabia nadar. Houve situações em que a vida lhes exigiu justamente o que não sabiam. Tipo de coisa que acontece nas melhores famílias.
O negócio do tigre era carne. Não dava pra ele comer o mamute, mas a preguiça apresentava-se um cardápio ideal. O caso é que eles passaram a conviver juntos. Então, da parte de um, a resolução de não agir covardemente com o “ente querido” . Da parte do outro, confiar no “ente querido” . São os invisíveis laços familiares que mantém a família visivelmente unida. Porque amor também significa esforço e renúncia.
Mesmo com a música do Burt Bacarah, a lhes romancear os passos, Sundance e Butch não tiveram um final feliz. Verdade seja dita, os caras eram bandidos, e gente assim, em geral, se não tem credencial, se dá mal.
Os professores da área de assistência social da Unisa estão de parabéns, mas o problema que eles descrevem nem tanto, até pela triste possibilidade de ser insolúvel.
Talvez venha a ter um Era do Gelo 3, talvez não, talvez já esteja pronto e eu aqui dormindo no ponto, o que se pode realçar, nessa argüição, é uma das afirmações do livro aqui citado: “nós nunca tivemos uma política de proteção à família”. O livro também revela uma afirmação interessante: não se resolve o problema de uma família disfuncional, ainda por cima carente, numa região problemática, dando-lhes uma cesta básica e a visita bienal de um assistente social. São necessários anos para corrigir ou amenizar essa situação.
O mamute, o tigre e a preguiça não contavam com assistência alguma, e a cesta básica deles vinha com o vento. Tipo de coisa que pode acontecer em muitas famílias.
Sundance e Butch não careciam de nada a não ser munição, mas, como já se disse, quem vive pela espada, morre pela espada.
A conclusão fica no Era 1: temos de cuidar uns dos outros, porque vivemos juntos.