A música brasileira na ditadura militar
“ Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto”
Pesadelo – M. Tapajós e Paulo C. Pinheiro
Alguns são saudosos do regime militar. É bom reavivar a memória: entre 1964 e 1985, o país sofreu censura ampla, geral e irrestrita. Nada escapava da ceifa dos censores. O clássico da literatura O Vermelho e o Negro, de Stendhal, foi proibido por causa do “vermelho” do título. Na novela Escrava Isaura, não se podia usar a palavra escravo. A polícia saiu às ruas à procura do autor de Electra, a mando de militares chocados com a violência da peça teatral. Naturalmente, não encontraram o grego Sófocles, morto 20 séculos antes.
Para calar a voz da nação, por ocasião do golpe militar de 64, improvisou-se uma equipe formada por esposas de militares, ex jogadores de futebol e funcionários públicos desviados de função. Despreparados e apoiados pela TFP e Igreja, os cães de guarda da moral eram implacáveis com quem destoasse dos valores ultramoralistas, antidemocráticos e anticomunistas do regime. Mais tarde, entre 74 e 85, concursos públicos para censores exigiram nível universitário. Os novos censores eruditos e bem informados continuaram tomando decisões pessoais. Além dos critérios de corte serem pouco claros, faltava diálogo entre os diferentes órgãos de repressão e sobrava arbitrariedade. Aldir Blanc conta que viu um general, aos gritos, ordenar a morte de Ney Matogrosso, pois o neto não parava de imitar seu rebolado. Paulo Coelho ficou preso por um mês por trajar camisa da seleção de futebol do Paraguai, o que um delegado julgou insultoso. Mais casos curiosos podem ser conferidos no ótimo site www. censuramusical.com.br.
Pela lógica da repressão, vigiar a cena musical garantia a desmobilização política da sociedade. Para os militares, artistas da MPB, inteligência de esquerda, movimentos operário e estudantil conspiravam para desestabilizar o regime. Os artistas lutavam pelo direito de sobrevivência no mercado de trabalho. Foi um período de grande efervescência cultural e política, onde a chamada música de protesto floresceu e se tornou a grande trincheira de resistência ao autoritarismo.
Entre 66 e 72, os festivais da canção fomentaram o protesto pacífico. A MPB driblava a censura com letras repletas de metáforas. Chico Buarque, contra a própria vontade alçado ao posto de bardo opositor, teve 40 músicas vetadas, a metade por razões políticas. Abusando do duplo sentido, são dele “Cálice” e “A Rita”, composta um ano após o golpe da Dita(dura), que, “além de tudo, me deixou mudo o violão”. Em “Acorda Amor”, canção onde diz ter menos medo do ladrão do que dos militares, burlou censores com o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Com o endurecimento do regime, Chico espontaneamente exilou-se na Itália. Menos sorte teve Geraldo Vandré, o irado compositor de “Pra não dizer que não falei das flores”: lenda viva, após o exílio no Chile desagregou-se como pessoa pública. Em 89 inexplicavelmente compôs “Fabiana”, uma homenagem à FAB.
A maioria das letras, no entanto, era vetada por questões morais. Para preservar a imagem de nação com rígida moral cristã, a censura policiava a anti-metáfora da música de protesto, a música simples e direta do povo. Odair José, o terror das empregadas, foi perseguido por versos que feriam a hipocrisia puritana. Teve “A Pílula” censurada por pressão da Igreja. Luis Ayrão, cantor brega mas engajado, compôs no 13o. aniversário do golpe “ há 13 anos que te aturo e não agüento mais”, à qual deu o título de “Divórcio”. A censura não percebeu.
Nos versos da canção, amordaçava-se o canto de um povo, num clima de paranóia. “Tortura de Amor”, de Waldick Soriano, foi vetada por causa da palavra tortura. A censura à “Curvas da Marquesa de Santos”, de Luís Nassif, justificava : personagem histórica não podia ter curvas. Em “Casa Forte”, de Edu Lobo, faltou letra e a música foi proibida. “Pra não dizer que não falei das flores” e “Disparada” foram vetadas na voz do autor, mas Jair Rodrigues podia cantá-las. Ter ou não a obra liberada era, nas palavras de Chico Buarque, roleta russa. “Apesar de você”, crítica à ditadura disfarçada em querela amorosa já tinha vendido 100.000 compactos quando foi censurada. Em “Bolsa de Amores”, Chico comparava uma garota às ações da bolsa de valores “ moça fria, ordinária, ao portador”. Teve que trocar o “ao portador” por “sem valor”. Em “Trocando em Miúdos” aplacou censores acrescentando “e nunca leu” ao “devolva o Neruda que você me tomou”.
Aquele foi também um período de patrulha ideológica interna. Em 72, Wilson Simonal desentendeu-se com seu procurador. Para vingar-se, o advogado espalhou que o cantor delatava colegas para o regime militar. Foi o suficiente para levá-lo ao ostracismo. Faleceu, em 2000, antes de ver seu nome absolvido pela Comissão de Direitos Humanos da OAB. Caetano Veloso, por seu estilo independente, era taxado de subversivo pelos militares, e de “entreguista Odara” pelos colegas engajados.
Alguns artistas aderiram ao regime da “potência de amor e paz”. Don e Ravel assinaram a marchinha “Eu te amo, meu Brasil”. Jorge Ben compôs “País Tropical” e “Brasil” e Zé Kéti foi autor do hino do sesquicentário da independência
O começo do fim da longa e tenebrosa nevasca cultural foi 1979. O recém criado Conselho Superior de Censura abrandava a atuação repressiva. Num tempo, página infeliz da nossa história, passagem desbotada na memória das nossas novas gerações, Chico e Francis Hime compuseram o samba “Vai Passar”, hino da Campanha das Diretas. Em 88 o ciclo se fechou com a promulgação da nova constituição. O grito de guerra do início da ditadura militar, de João do Vale – “Carcará pega, mata e come” – enfim silenciava. Era o fim do regime do “Pisa na fulô, mas não maltrata o carcará”. Que ele descanse em paz, sem direito à ressurreição ou à vida eterna.