Perdão em tempos de cólera

Se há uma palavra “batida”, usada por demais, é perdão.

Talvez mais até do que “transparência” e “cidadania”. Assim como essas outras duas, as pessoas falam muito em perdão mas quase ninguém tem disposição a perdoar os outros.

Tenho um amigo, que trabalhava, há uns dez anos atrás, em uma editora religiosa, e andou batendo de frente com um diretor, um padre. Arrependido da explosão (segundo ele, grosseira mas justa), pediu para confessar-se com o religioso. Este executou o rito penitencial e, depois de terminado, disse-lhe: “Deus deve ter perdoado você; eu não!”. E demitiu o homem, honesto, capaz, de uns 50 anos.

Hoje, quando vivemos em “tempos de cólera” como diria G. G. Marques, as relações radicalizam-se cada vez mais, e às vezes rompem-se por qualquer bobagem, e depois falta o perdão para remendar.

Os simpatizantes das seitas orientais costumam referir-se à não-violência e ao caráter pacifista dos monges budistas, esquecendo-se que foram eles que inventaram as artes marciais, muitas elas permeadas de sutemi (golpes mortais).

Os defensores da pena de morte situam-se entre estes que não admitem perdoar. A eles não interesse o ambiente familiar, o meio em que o delinqüente foi ciado, nem a coação diabólica que o indivíduo sofreu até cometer o delito. É o caso explícito de Arnold Schawarzzeneger, atual governador da Califória.

Ao emular a pena de morte, alguns “cidadãos ordeiros e cristãos” querem que ela seja precedida de sofrimentos cruéis, torturas e só depois disto, a morte. Já ouvi gente dizer, após a execução de um bandido, lá nos EUA: “Bem feito!”. Isto, convenhamos, não é cristão.

A “vingança” da sociedade é tão cruel quanto o crime que ela quer coibir. Certos segmentos da mídia costumam, através de seus brilhantes “formadores de opinião”, fomentar o revide, dispondo a sociedade à violência, à vingança, ao “olho por olho”. Alguém morre e já aparecem os corifeus da pena de morte. É o tempo de cólera instaurado eternamente...

Houve o caso de um prelado, idoso, que foi assaltado, há alguns anos atrás. Há quem diga que o “assalto” (ao que parece recheado de violência sexual) teria sido praticado a mando de um de seus pares. Entrevistado, no leito do hospital, o homem ignorou votos e convicções, declarando que se tivesse uma arma teria atirado nos agressores.

Sem perdão, a sociedade mergulha na violência, cada vez mais.

A literatura mundial, desde a Bíblia, passando pela Cabala talmúdica, até os clássicos, todos têm sua idéia sempre a favor do perdão e contrária à vingança. “Se um inimigo tem fome e sede, dá a ele de comer e de beber. Ao invés de vingar-se, tu o deixarás corado de vergonha, e Deus te recompensará” (Provérbios 25, 21-22); “Perdoa a quem dá um passo em falso; lembra-te que tens um pé que pode falhar” (Talmude judaico); “O homem que perdoa segue a lei de Deus” (Corão); “Quem ama perdoa; quem nao perdoa, ama mais a si próprio do que ao outro” (Anatole France); “Lembra-te de que, quando te tornares indulgente com os outros, começaras a ser rigoroso contigo mesmo, pois em geral, os que a si próprio perdoam com facilidade são hipocritamente rigorosos com os outros” (São Francisco de Sales).

Por outro lado, há muitos textos que condenam a vingança: “Aquele que busca a vingança, encontrá-la-á no Senhor, que lhe pedirá contas dos seus pecados” (Eclesiástico 28,1); “A pessoa sábia não procura vingar-se de seus inimigos; deixa esse cuidado à vida” (Pascal).

Deste modo, se os tempos são de violência e de impunidade, deixe-se a vingança a Deus. Ele dará a cada um o que merece. Não sujemos nossas mãos com a violência que tanto condenamos. A pedra jogada sempre volta.

Antônio Mesquita Galvão

Doutor em Teologia Moral,

cuja tese versou sobre a existência do Mal.

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 19/01/2006
Código do texto: T100875