Quatrocentas cilindradas de emoção

A moto era realmente uma beleza. Suas linhas arrojadas, a cor vermelho-metálico, os pneus largos, os acessórios e o ronco grave diziam bem porque o prospecto do fabricante chamava-a de fera, atribuindo-lhe “quatrocentas cilindradas de emoção”. A buzina era do tipo “polícia americana” e o arranque no botão. O sonho do garoto enfim se realizara. Ele sempre quis uma moto assim, e agora podia desfrutar da enorme liberdade que o vento e a velocidade lhe proporcionavam.

A moto fora presente dos pais, no Natal. Afinal, diziam eles, o ano foi difícil para todos, e realmente não houve possibilidades de um encontro maior da família, por isso a moto serviria para alegrar o rapaz e minimizar os efeitos da ausência dos pais; ele cheio de trabalhos, viagens, compromissos, algumas saídas a passeio (só o casal), clube de serviço, etc.; a mãe, rodas sociais, chás beneficentes, cruzada disso, liga daquilo, trabalhos de igreja, etc. A irmã mais velha também ganhou um presente valioso: um cruzeiro marítimo à Europa, junto de uma colega, com a qual mantém uma estranha amizade; passou lá uns quarenta dias.

No verão vi o rapaz correndo de moto. Lá ia ele, capacete vermelho, empinando a moto na arrancada, arrancando sorrisos e gritinhos nervosos das garotas.

É triste que alguns pais, quando não podem (ou não sabem) dar carinho, dão coisas materiais a seus filhos, como se isso bastasse, como se o presente, mesmo caro e cobiçado, tivesse o condão mágico de reparar a afetividade que não deram, a atenção que não dispensaram, a presença que sonegaram. Por esse caminho de abandono aparecem os drogaditos, os violentos, as mães solteiras, os promíscuos e os indiferentes...

Algumas pessoas, de certa forma incompetentes para o amor, tentam resolver a coisa pelo lado materialista. Afinal, é só o que eles sabem fazer. A vida é um mercado para eles. Os sentimentos se compram com coisas. Se não tem amor, dá-se dinheiro, presentes...

Mas, que fazer? Perguntam os pais: há compromissos a atender, campanhas a encetar, viagens, negócios a tocar, e há também o lazer, ninguém é de ferro... Como não se pode dar presença, dá-se presentes caros.

Há um mês vi o garoto na moto. Esta semana vi-o novamente. Nem tão alegre, nem tão livre... Estava deitado na pedra fria do necrotério, morto, todo quebrado... Sofreu um acidente de trânsito. Folhei o processo, li depoimentos de testemunhas, vi fotos dramáticas.

Curiosamente, entre os culpados não vi arrolados os nomes dos pais do rapaz, que, para contrabalançar anos de abandono, verdadeira desidratação afetiva, deram-lhe no Natal uma vistosa moto vermelha. Quatrocentas cilindradas de emoção. Emoção e morte.

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 19/01/2006
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