Passeando pela União Soviética - Leningrado
Frio de zero grau, é noite, ninguém na rua. Perdão, vai lá um homem oculto pela névoa. Dizem que é um louco, um doente ou um subversivo. Outros garantem que é tudo isso, sim: é um escritor. A neblina o escondeu, creio que virou à direita, duas ruas depois do Palácio de Inverno do Tzar. Talvez seja seguido, mas isso não é surpresa. Há muitos sendo seguidos, aquele homem na névoa seria apenas mais um. Há medo no ar. Pode-se segurar, apalpar o medo, é algo quase material. Muita coisa vai acontecer porque o medo é um balão que vai se enchendo até não poder mais e explode afinal em um determinado momento.
Da Fortaleza ouvem-se gritos, às vezes. Talvez alguém sendo torturado ou alguém que recebeu a notícia do exílio, o barco já o espera no cais ao fundo da Fortaleza. Com certeza, é alguém transferido para outra cela que procura, quem sabe, escutar pelo menos a própria voz. É que nas celas não se pode ouvir nada. Paredes grossíssimas, à prova de som. E, não fosse isso, que voz humana ousaria gritar contra o Senhor de Todas as Rússias? Poderia ser um inimigo do Estado, mas poderia ser apenas um inimigo pessoal de algum poderoso. Gritaria uma vez só... E nunca mais. Ou a Sibéria ou a Morte se encarregariam de silenciá-lo para sempre.
São Petersburgo dorme. O Neva continua seu caminho eterno, indiferente aos poderosos e aos desgraçados. Não importa que nome tenha a cidade, ele continuará fielmente sua tarefa, obedecendo à Natureza, banhando-a lépido no verão, tornando-se estática superfície congelada no inverno.
Regressemos ao vulto na névoa. Ali vai um homem que também não morrerá. Ele irá para a Casa dos Mortos e voltará, vivo, para a Eternidade. Nem as crises da grave doença nem as ameaças dos poderosos podem detê-lo. Talvez nem ele tenha escolhido esse destino. É que há homens como os rios, têm sua tarefa, sua missão misteriosa além, às vezes, do conhecimento racional. E a cumprem. E permanecem.
São Petersburgo, algum dia do século passado. Muita neblina, noite alta, escura e úmida. Um homem dobra uma das pequenas ruas depois do Palácio de Inverno. Talvez o sigam, talvez queiram eliminá-lo, basta um deles ultrapassá-lo, interromper seu caminho, o outro o esfaqueará por trás, debaixo do grosso abrigo de inverno. Porém não puderam com seu passo. Ele vive até hoje nos seus livros.
Moscou é mais a Rússia de hoje. Leningrado – ou são Petersburgo – é o passado. Sabe a passado, trabalhos forçados, exílios na Sibéria, Dostoiewski, Gorki, os Tzares, as prisões, palácios, fortalezas, execuções, agitações, conspirações. Daqui se desenhou o destino da Rússia. Daqui Lenin fundou a nova Rússia. São Petersburgo, fundada em 1703, é uma cidade construída por Pedro, o Grande, para ser a Capital do Império. Viveu glórias, viveu sitiada 900 dias pelos os exércitos de Hitler, sob 100 mil bombas, 1 milhão de mortos. Mas os nazistas não entraram em Leningrado – ou São Petersburgo, ou Petrogrado, como queiram.
Cidade de canais e monumentos. Cidade de fábricas e de História. Cidade do Hermitage. Cidade onde viveu Fiódor Dostoiévski. Cidade encantadora. Cidade que se pinta esta semana, laboriosamente, para o 1º de Maio, dia da festa universal dos trabalhadores.
(Leningrado, União Soviética, 27/04/1979, 10 minutos para meia-noite)