E ali estava eu em León caminhando entre seus cidadãos como se fosse um deles. Aquilo me dava uma indisfarçável alegria. Por algum motivo eu gostava de me sentir assim: um estranho no ninho, mas incógnito e a milhares de quilômetros de casa. Tinha acabado de me hospedar numa residência universitária chamada Miguel de Unamuno que me foi recomendada pelo Setor de Informações Turísticas local. Comecei a explorar vagarosamente a cidade, pois meu pé ainda me incomodava.

Precisava obter alguns euros para minhas despesas diárias e observei que as pessoas estavam fazendo seus saques em caixas automáticos externos, sob os olhares de todos. Esses caixas ficavam embutidos nas paredes dos prédios e era praticamente impossível alguém não ser visto tirando dinheiro, ali bem no meio da rua.

Quanto mais andava mais ficava admirado com aquela linda cidade, ordeira, pacífica e moderna. León obviamente também tem sua parte histórica, ou “casco antiguo”. Apressei-me em visitar sua catedral que rivaliza com aquela de Burgos. Fiquei fascinado, muito embora achasse que a de Burgos é mais imponente e de maior importância histórica, fato este que não é admitido pelos leoneses sob nenhuma hipótese. A Casa de los Botines de Antonio Gaudí construída no século XIX também vale a visita.

Em León talvez exista a maior concentração de bares por metro quadrado de toda a Espanha. Quando anoitece a cidade vira um verdadeiro formigueiro de pessoas bebendo, até mesmo em pé do lado de fora dos bares, colocando suas taças, copos e pratinhos de “tapas” ou “pinchos” sobre barris estrategicamente dispostos, aguardando por uma vaga dentro do estabelecimento.

Esse aglomerado de bares é conhecido internacionalmente como “Barrio Húmedo” ou Bairro Úmido. Tirem vocês mesmos suas próprias conclusões do porquê desse nome. E eu sem poder beber nada. Caramba, que azar!!!

No final do dia voltei para a Residência Universitária e dividi um quarto com três italianos em dois beliches. Lá pela meia-noite fui despertado por um alegre grupo de jovens estudantes, moças e rapazes visivelmente “borrachos”. Acho que tinham acabado de chegar do Bairro Úmido. Abri a porta do quarto e passei um sermão neles, dizendo que ali havia pessoas que precisavam dormir e acordar cedo no dia seguinte. Todos se compuseram e seguiram calados para suas respectivas acomodações.

Resolvi ficar mais um dia em León, tanto para conhecer melhor a cidade quanto para dar um descanso melhor ao meu pé. Reclamei com a direção da Residência Universitária sobre o acontecimento da noite anterior. Eles me recomendaram um quarto individual com banheiro (suíte) localizado numa área mais “calma”. Obviamente custava bem mais, porém aceitei sem reclamar.
Acordei no dia seguinte disposto a caminhar, mas estava chovendo muito e a temperatura tinha caído para 2 graus centígrados. Tomei meu café e aceitei o desafio.

Fui caminhando em direção a Villadangos Del Páramo, onde pretendia ficar. Teria que andar 22 km até lá. Passei por Trobajo Del Camino, La Virgen Del Camino, Valverde de La Virgen, San Miguel Del Camino e após cruzar um polígono industrial, extensa área deserta com indústrias e muitos armazéns de estocagem de produtos.

Ali avistei o albergue de destino num entroncamento da estrada N-120, com 54 acomodações. Saí para jantar ali próximo e a temperatura começou a cair vertiginosamente. Ainda bem que tinha parado de chover.

Para dormir, a administradora do albergue distribuiu aquecedores elétricos pelos cômodos. Seria realmente difícil passar aquela madrugada ali sem eles.

No dia seguinte acordei bem cedinho e comecei a caminhar em jejum. Tomaria café mais adiante, pois todo o comércio local estava fechado.
Olhei para o termômetro digital externo que estava logo na saída da cidade e mal acreditei: este marcava 0,5 grau (meio grau centígrado).
Minha pele já estava ficando queimada pelo frio, pois eu caminhava sempre de bermudas e não usava luvas ou gorro. Eu tinha que chegar a Astorga, situada a 28 quilômetros dali. Era muito chão!!!

Após passar por San Martín Del Camino, parei em Hospital de Órbigo, uma importante cidade do percurso com pouco mais de 1.000 habitantes onde tomei meu café. Sua magnífica ponte romana sobre o rio Órbigo, conhecida como “Puente Del Passo Honroso”, além de histórica é indiscutivelmente a maior e mais conservada do Caminho.
Continuei minha marcha passando por Villares de Órbigo, Santibáñez de Valdeiglesias e pouco antes de San Justo de La Vega, aos pés do “Cruceiro Toribio”, encontrei uma emblemática figura do Caminho: chama-se José Aleluya. Por algumas moedas ele toca violão pra você e te deseja boa sorte até Santiago.

Ele cantou para mim uma canção em ritmo flamenco: “mi amigo Sergio, ha venido desde Brasil, ya va a llegar, a Santiago”. Depois disso, fazia seu violão rodopiar no ar e continuava:
“mi amigo Sergio, ha venido desde Brasil, ya va a llegar, a Santiago”.
Perguntou se eu não tinha alguma moeda Brasileira para a sua coleção. Dei-lhe todas as que estavam na minha bolsa e “de quebra”, algumas notas novinhas de 2 reais. Ele ficou eufórico.
Cheguei finalmente ao meu destino. Exausto, após quase 30 quilômetros de caminhada, hospedei-me no Albergue Municipal “Siervas de María” de propriedade dos “Amigos del Camino de Santiago de Astorga”, muito bem transado e com todo o necessário para o peregrino. Preço: 5 euros. Não dá pra acreditar (risos).

Astorga é outra linda cidade do Caminho e também repleta de história. Tudo nela se refere à palavra MARAGATO. Por exemplo, “cocido maragato de Astorga – Lo mejor de España”. Bar Maragato; Panadería Maragata; Chocolate Maragato, etc., etc., etc.

Acabei descobrindo a origem do nome: Maragato vem de Maragateria que é uma comarca espanhola situada na Província de León na Comunidade Autônoma de Castilla e León. Sua capital é exatamente Astorga. Muitos habitantes dessa comarca, os “MARAGATOS”, emigraram no passado para o região sul do Brasil, notadamente para o Rio Grande do Sul e também para a Argentina. Maragatos foi também o nome dado aos sulistas que iniciaram a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul em 1893 contra os Ximangos que então detinham o poder. Os Maragatos eram assim chamados pejorativamente pelos Ximangos como referência aos descendentes de um povo que tinha vindo de fora para meter o nariz onde não havia sido chamado. Fiquei pensando como é que um povo sai da sua terra para influenciar o destino de outras nações tão distantes. Isso já havia acontecido com Giuseppe Garibaldi que veio de mais longe ainda e fez história em nosso país, coincidentemente no Sul, junto com a catarinense Anita Garibaldi.
Há muita coisa bonita para se ver em Astorga, mas é um verdadeiro pecado mortal não conhecer pelo menos sua magnífica catedral cuja construção iniciou-se em 1471. O Palácio Episcopal, que se assemelha a um castelo de contos, abrigando em seu interior o “Museu de los Caminhos” também deve ser igualmente visitado. Seu idealizador foi Antonio Gaudí, o mestre espanhol da arquitetura. Ele, sempre ele..........

Quanto ao “Cocido Maragato”, sinceramente o nosso é mais farto e completo. Uma curiosidade desse prato servido em Astorga, é que primeiro devemos comer o cozido para somente depois tomar a sopa feita com o caldo que sobrou dos legumes e das carnes durante o seu preparo.

Depois de conhecer a cidade e jantar, fui para o albergue dormir. No dia seguinte tinha que caminhar mais 20 km até Rabanal Del Camino. O pé já estava praticamente curado, talvez com uma “mãozinha” dos bons fluidos emanados da Via Láctea sob a qual se situa todo o Caminho de Santiago.
Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 01/10/2017
Reeditado em 09/10/2017
Código do texto: T6129929
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