A MORTE ME DEU BOM DIA NO PERU

Enfim chegamos a Nazca, famosa pelas linhas atribuídas ao sobrenatural. De Lima à Nazca, por Ica, devastada por um grande terremoto, não dista nem tanto assim; mas o deserto gélido soprava muita areia; e nosso carro queria avançar, enquanto nossos olhos queriam curtir a paisagem...

Finalzinho da tarde, aos pés de um grande maciço rochoso andino, enquanto o frentista enchia o tanque do soberbo Optma 3.0, falei com meu irmão que atacaríamos a montanha ainda naquela tarde; e antes das 20 horas estaríamos jantando em Abancay, lá pelas bandas do Apurimac, que fica a cerca de 460 km de onde estávamos e há 2,5 mil metros acima do nível do mar...

Nessa hora fui interrompido pelo frentista de Nazca, já quase completando os 100 litros de nafta pura; que me disse: - Vocês irão subir a grande rocha hoje? Lhe disse que sim, porque atrasamos e precisávamos chegar a Cusco em dois dias; e ele voltou a interromper-me dizendo: - Não façam isso! No meio do caminho há Pampas Galera e costuma cair muita neve à noite; além do mais, o ponto de passagem de uma face a outra dos Andes, fica a 5.632 metros acima do nível do mar, e nesse ponto não é todo mundo que suporta a pressão!

Nessa olhei para a cara de preocupação de meu irmão, que me disse: - Acho mais prudente dormirmos em Nazca e iniciarmos a subida amanhã cedo...! – Tive que concordar, mesmo sem querer acreditar que aquela jornada fosse tão difícil!

Domingo cedo, acordamos a procuramos um lugar para um café. No máximo o que achamos foi uma bodega pequena que tinha pão e Inca Cola (refrigerante amarelo cintilante neon). Começamos a subida às 7:00h e quando avistamos uma placa que dizia: “Última oportunidad de comer algo en los próximos 8 horas”, paramos e percebemos que se tivéssemos arriscado passar Pampas Galera à noite, com certeza estaríamos mortos...

Eram 11:15h e sequer havíamos vencido os primeiros 100 km; e isso se dá, porque para vencer os Andes de carro, você precisa ir de um lado para o outro, como se subisse uma escada que nunca acaba, várias vezes; e quando você começa a pensar que tudo acabou, lá vem outra parte rochosa e sinuosa da estrada que nos transporta de montanha em montanha, da menor, que já é enorme, até o ponto mais alto que acaba num platô com centena de quilômetros na altitude superiora aos 2900 metros!

A Cordilheira dos Andes é majestosa e também impiedosa. Um policial me disse no meio do caminho quando eu comecei a passar mal, por causa da altitude: - ¡Mi hijo! Este lugar no es para aficionados y débil... Si pasa, va a ser otro hombre, pero si quieres, no seas tímido y renuncias ahora!”. Agradeci ao gentil policial, molhei meu rosto e segui em frente...

Quando o altímetro marcou 5.000 metros, vi que meus pulmões se contorciam; vi que o perigo de morte me rondava. Sequer eu tinha oxigênio auxiliar, pois esse era o desafio: chegar o máximo que eu pudesse sem ajuda de oxigênio industrial. Um fumante, obeso e sedentário; e meu irmão, malhado, jovem, atleta; os dois perdidos no alto do Andes, quase chegando ao ponto mais alto que se pode ir de carro, passando mal e vendo uma nevasca a frente.

Não fazia frio intenso, cerca de -3 graus e para completar, não apanhamos nossos casacos. Resolvi parar o Optima no acostamento e traçar uma estratégia. Eu não sabia, mas estava acontecendo em mim uma embolia pulmonar; e o melhor a fazer era respirar ali mesmo; e não descer feito louco, porque isso sim faria meus pulmões explodirem. Além do mais, o “descer feito louco” era uma coisa de 5, 6 horas se tivéssemos sorte, porque com uma nevasca daquelas, num dos pontos mais altos do Peru, 12 horas para descer era o razoável!

Decidimos seguir em frente; e essa decisão salvou nossas vidas!

40 minutos de nevasca intensa e parados no acostamento só vendo a neve se acumular envolta do Optma, um caminhão enorme passou por nós. Desde Nazca, nenhum carro foi ou veio naquela estrada linda e sombria; e quando esse caminhão riscou a neve, resolvi seguir seus rastros; e por quase 2 horas sem parar, segurando a emoção e controlando a respiração, saímos finalmente daquele platô nevado, mas antes disso, o registro do altímetro: atingimos 5.632 metros acima do nível do mar (quase duas vezes o ponto mais alto do Brasil, que é o Pico da Neblina); e esse foi o ponto mais alto que um dia eu cheguei de carro...

E aos que pensam que aquela expedição havia chego ao fim, digo que desci tudo pela face Leste da Cordilheira, a parte contrária de onde eu havia subido, e fui a Arequipa, no nível do mar, onde ficou constatado um início de embolia pulmonar; e onde também eu fui medicado e liberado; e dessa vez, liberado para voltar para casa, mas ao invés disso, contra a vontade de meu irmão, pus o Optma na estrada e voltei aos Andes para fechar minha meta, que era chegar a Cusco e Macchu Picho.

Se muitos peruanos conseguem, porque eu não conseguiria? Medo, nunca tive! Receio é uma palavra que raramente uso ou aplico em minha vida. É nessa hora que rapidamente eu incorporo a minha latinidade americana, o meu sangue misturado entre o negro africano e o indígena americano. É nessa hora que lembro dos heróis mortos ou dos gênios musicais que tanto serviram-nos como inspiração na Década de 70, como Raíces de América em Fruto do Suor:

“A terra nova era um paraíso, o milho alto e os rios puros! Dormia o ouro a cobiça ausente, era o índio senhor do continente! Foram chegando os conquistadores, os africanos e os aventureiros; o índio altivo se mesclou aos escravos, nascia um novo tipo americano. O interesse fabricou carimbos, o ódio à toa levantou paredes, a baioneta desenhou fronteiras, e a estupidez nos separou em bandeiras...

Tenho um filho desta terra, foi um amor sem passaporte! Se o gestar foi brasileiro, não me chames de estrangeiro.... Cada pedra, cada rua, tem um toque de imigrantes. Levantaram com seus sonhos, um país que não tem donos.

O suor fecunda o solo, e a semente não pergunta. Brasileiro ou imigrante? Só o fruto é importante! Não me sintas forasteiro, não me invente geografias, sou tua raça, sou teu povo; sou teu irmão no dia-a-dia!”

Todos os pontos que quis conhecer no Peru o fiz; e para encurtar a história, voltei a Lima após 15 dias rasgando o maciço dos Andes, muito mais renovado e energizado; mas minha missão ainda não terminou. Preciso voltar e tentar rever aquele policial, o Sargento Rodriguez que me parou para me fazer refletir sobre seguir ou voltar; e dizer a ele que os Andes me fez um outro homem!

Já pensei bastante em subir acima dos 5.632 msnm (metros sobre o nível do mar), mas em minha última tentativa, um ano depois do Peru, no Valle de la Muerte, entre o Chile e a Bolívia, senti muita tontura e quase desmaiei as 4.200 msnm; e desisti. Um dia depois, tentei mais uma vez, escalando o vulcão Lincacabur, cujo topo está a 5.916 msnm, mas os Carabineros del Chile, polícia chilena, me advertiu que não subisse, pois havia grande risco de atividade; e nesse caso, manda quem pode; obedece quem tem juízo!

Se um dia o Grande Arquiteto do Universo me permitir luz para um regresso ao Peru, minha meta é atacar o Nevado Huascarán, 6.768 msnm; com 6.500 msnm fica a estrada mais alta da América do Sul, o ponto mais alto que um veículo que não seja aéreo pode chegar! Essa é minha meta; esse é meu sonho; e eu tentarei realiza-lo!

Carlos Henrique Mascarenhas Pires

CHaMP Brasil
Enviado por CHaMP Brasil em 14/02/2016
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