QUE NEM ÍNDIO
Costa Azul, capítulo 2
Eu não entendia de shopping centers, pois na época eles não existiam ou não eram moda, até porque minha família não era chegada à civilização... Cresci vendo barcos, peixes, ondas e correntezas. Conheci as marés e os fenômenos da natureza da mesma forma que conhecemos as primeiras letras e a caligrafia. Aliás, fiz muito “dever de casa” sentada naquelas areias, que nem Buda...
Minha mãe não hesitava em nenhum momento. Mesmo acampada numa praia paradisíaca, obrigava-me a estudar. Eu odiava, principalmente quando me exigia que eu lesse os livros de Jorge Amado... Eu queria nadar que nem os peixes, ficar de bobeira que nem as gaivotas, mas aquela coisa de escola, mesmo tão longe dela, me impedia de ser índio.
O melhor de tudo era acordar numa barraca Flávia A4, encarando uma maria-farinha fazendo careta. De vez em quando entrava uma cobra fugida do calor e a gente a protegia até a lua aparecer.
De manhã cedinho acordavam-me pra ver o astro rei. Meu pai dizia que tínhamos que presenciar sol surgindo. Eu tomava banho de água doce, usavando um banheiro politicamente correto: uma latrina biológica. Mandavam-me escovar os dentes e pentear os cabelos, mas logo logo eu me molhava na água salgada e deitava na areia, ficando mais parecida com um bife à milanesa...
O almoço era quase que caçado, mais que pescado. Meu pai e meu tio caçavam arraias, entretanto aquilo me dava dó, pois elas choravam. Eles me mostravam as grávidas e eu ficava irada com a covardia. Um dia meu pai parou de pescá-las, diante de meu espanto.
Os botos e golfinhos vinham bem na beira e ele dizia que aquilo não era natural. Ele ficava de olho nos arpões dos mergulhadores, que entravam no mar e queriam matar nossos amigos. Meu pai espantou muito pé-de-pato atrevido que pairava no lugar.
O respeito ficou maior quando comecei a retirar anzóis enterrados nas mãos dos caras e espetos de ouriços em bundas e pés. De vez em quando pintava um afogado, mas naquele mar era incomum salvamento, pois o aventureiro geralmente morria logo de cara.
Eu importunava as anêmonas moles, comia mexilhões e camarões vivos, quando dava fome, e pisava forte na areia molhada que brilhava de noite, recheada de plânctons. Eu assistia às tartarugas que postavam seus ovos nos buracos. Eu ficava quietinha, sem fazer qualquer movimento.
Era bom nadar pelada, até brincando com os trovões, ignorando que eles são perigosos perto do mar. Como era bom sentir a chuva e os relâmpagos na praia!
Contei muitas estrelas coloridas: Vênus era a Dalva. O Cruzeiro do Sul eu não via, mas meu pai insistia em dizer que ele estava lá no céu. De vez em quando um cometa aparecia pra me brindar, mas sumia rápido. Brincavam comigo dizendo que era invenção da minha cabeça... Minha mãe acreditava em mim e me olhava de soslaio, perguntando se eu tinha feito meu pedido. Se eu pudesse voltar ao tempo, pediria agora um segundo nesse mesmo tempo.
Os ventos nos importunavam. Era a tal da princesa lestada, mas o sudoeste vinha como o malvado imperador. Eu só sabia que aquele reinado me obrigava a trabalhar pra manter a barraca em pé. No nosso barco era pior, pois parecíamos bolinhas de gude. Bom mesmo era quando o mar não puxava e dava um tempo pra gente fazer xixi...
Quase perdi alguns dentes de leite tentando morder os chumbos das redes, imitando os movimentos de meu pai. Ele me explicava que nosso dentista era careiro demais e que eu precisava ficar pelo menos um pouco maior pra virar pescadora de tarrafa. Isto jamais aconteceu, pois fiquei baixinha...
Um dia eu me entendi com o sol. Ele convivia comigo, mas eu nem ligava pra ele. Em certo momento eu sentei nas pedras que aprecem nesta foto e observei seu comportamento. Ele era tão imponente, apesar de silencioso, que me chamou a atenção. Talvez em Costa Azul, 40 anos atrás, eu tenha aprendido o que é poesia. Eu começava a virar gente...
Texto e fotografia por Leila Marinho Lage
Rio, 30 de junho de 2011
Clube da Dona Menô - http://www.clubedadonameno.com
Costa Azul, capítulo 2
Eu não entendia de shopping centers, pois na época eles não existiam ou não eram moda, até porque minha família não era chegada à civilização... Cresci vendo barcos, peixes, ondas e correntezas. Conheci as marés e os fenômenos da natureza da mesma forma que conhecemos as primeiras letras e a caligrafia. Aliás, fiz muito “dever de casa” sentada naquelas areias, que nem Buda...
Minha mãe não hesitava em nenhum momento. Mesmo acampada numa praia paradisíaca, obrigava-me a estudar. Eu odiava, principalmente quando me exigia que eu lesse os livros de Jorge Amado... Eu queria nadar que nem os peixes, ficar de bobeira que nem as gaivotas, mas aquela coisa de escola, mesmo tão longe dela, me impedia de ser índio.
O melhor de tudo era acordar numa barraca Flávia A4, encarando uma maria-farinha fazendo careta. De vez em quando entrava uma cobra fugida do calor e a gente a protegia até a lua aparecer.
De manhã cedinho acordavam-me pra ver o astro rei. Meu pai dizia que tínhamos que presenciar sol surgindo. Eu tomava banho de água doce, usavando um banheiro politicamente correto: uma latrina biológica. Mandavam-me escovar os dentes e pentear os cabelos, mas logo logo eu me molhava na água salgada e deitava na areia, ficando mais parecida com um bife à milanesa...
O almoço era quase que caçado, mais que pescado. Meu pai e meu tio caçavam arraias, entretanto aquilo me dava dó, pois elas choravam. Eles me mostravam as grávidas e eu ficava irada com a covardia. Um dia meu pai parou de pescá-las, diante de meu espanto.
Os botos e golfinhos vinham bem na beira e ele dizia que aquilo não era natural. Ele ficava de olho nos arpões dos mergulhadores, que entravam no mar e queriam matar nossos amigos. Meu pai espantou muito pé-de-pato atrevido que pairava no lugar.
O respeito ficou maior quando comecei a retirar anzóis enterrados nas mãos dos caras e espetos de ouriços em bundas e pés. De vez em quando pintava um afogado, mas naquele mar era incomum salvamento, pois o aventureiro geralmente morria logo de cara.
Eu importunava as anêmonas moles, comia mexilhões e camarões vivos, quando dava fome, e pisava forte na areia molhada que brilhava de noite, recheada de plânctons. Eu assistia às tartarugas que postavam seus ovos nos buracos. Eu ficava quietinha, sem fazer qualquer movimento.
Era bom nadar pelada, até brincando com os trovões, ignorando que eles são perigosos perto do mar. Como era bom sentir a chuva e os relâmpagos na praia!
Contei muitas estrelas coloridas: Vênus era a Dalva. O Cruzeiro do Sul eu não via, mas meu pai insistia em dizer que ele estava lá no céu. De vez em quando um cometa aparecia pra me brindar, mas sumia rápido. Brincavam comigo dizendo que era invenção da minha cabeça... Minha mãe acreditava em mim e me olhava de soslaio, perguntando se eu tinha feito meu pedido. Se eu pudesse voltar ao tempo, pediria agora um segundo nesse mesmo tempo.
Os ventos nos importunavam. Era a tal da princesa lestada, mas o sudoeste vinha como o malvado imperador. Eu só sabia que aquele reinado me obrigava a trabalhar pra manter a barraca em pé. No nosso barco era pior, pois parecíamos bolinhas de gude. Bom mesmo era quando o mar não puxava e dava um tempo pra gente fazer xixi...
Quase perdi alguns dentes de leite tentando morder os chumbos das redes, imitando os movimentos de meu pai. Ele me explicava que nosso dentista era careiro demais e que eu precisava ficar pelo menos um pouco maior pra virar pescadora de tarrafa. Isto jamais aconteceu, pois fiquei baixinha...
Um dia eu me entendi com o sol. Ele convivia comigo, mas eu nem ligava pra ele. Em certo momento eu sentei nas pedras que aprecem nesta foto e observei seu comportamento. Ele era tão imponente, apesar de silencioso, que me chamou a atenção. Talvez em Costa Azul, 40 anos atrás, eu tenha aprendido o que é poesia. Eu começava a virar gente...
Texto e fotografia por Leila Marinho Lage
Rio, 30 de junho de 2011
Clube da Dona Menô - http://www.clubedadonameno.com