CARNAVAL DE CINZAS

CARNAVAL DE CINZAS

Há muito que não vislumbramos um Carnaval com tantos problemas. Evidentemente que me refiro ao desfile das grandes escolas de samba e não ao Carnaval propriamente dito. Algumas destas escolas, Grande Rio, União da Ilha e Portela, duramente atingidas pelo incêndio ocorrido nos espaços a elas reservados na Cidade do Samba, vão ter que se superar em muito para tentar concorrer em igualdade de condições com as outras grandes que lograram sair incólumes da tragédia.

A meu sentir, o maior espetáculo da terra poderia ser transferido para outra data, quem sabe abril, o que possibilitaria às escolas prejudicadas um tempo maior para refazer os seus carros alegóricos, suas alegorias e suas fantasias, dando-lhes aquele costumeiro toque de qualidade ao desfile. Não estou falando em transferir o Carnaval, mas sim o desfile das escolas do Grupo “A” para os dias 23 e 24 de abril. O desfile das escolas de samba ocorre no Carnaval mas, convenhamos, não está a ele vinculada. Este ocorre somente uma vez por ano, com data previamente marcada e inadiável; enquanto aquele pode ser realizado mais de uma vez e em qualquer época.

Vale dizer, que além das três escolas atingidas estarem envolvidas na dolorosa operação rescaldo, com seus corações chamuscados e enfumaçados, o carioca ainda vive e sofre pelo drama da calamidade que atingiu cidades vizinhas, muitas ainda sob os escombros, vítimas que foram das enchentes que desmoronaram principalmente a região serrana.

Além do bom-senso, seria um ato respeitoso às escolas e ao público que vai ao sambódromo, pagando um preço altíssimo, poupá-los de um desfile cujo enredo único será “prejuízos e constrangimentos”. Da mesma forma, seria dignificante demonstrarmos a nossa sensibilidade, dando uma trégua a centenas de irmãos que ainda amargam e choram a perda dos seus entes queridos engolidos pela lama e que ignoram onde se encontram os remanescentes. O minuto de silêncio que provavelmente lhes será concedido na passarela do samba, é muito pouco para quem precisa de uma eternidade de ajuda e carinho para a reconstrução de suas vidas e recriação do seu viver.

Vejam bem, o Carnaval se realizaria normalmente nos dias 5 a 8 de março, inclusive com o desfile das escolas do Grupo de Acesso, no sábado, dia 5. Neste mesmo dia a abertura do período carnavalesco se daria normalmente, com o Cordão do Bola Preta logo pela manhã entupindo e congestionando todo o centro da cidade. Os demais blocos e bandas desfilando pela avenida, pela orla marítima e pelos subúrbios cariocas. As ruas e calçadas como sempre transformadas em rios e sorvedouros da infétida urina dos foliões; as mulheres continuariam passando pelo constrangimento de se abaixarem atrás dos carros, mostrando seus traseiros ao olho vigilante das câmaras escondidas. Os blocos invadidos pela infinidade de carrinhos de latinhas de cerveja, para tortura dos desprotegidos joelhos. Aquela mesmice institucionalizada que vocês já conhecem de sobra. Com todo respeito ao Bloco Cacique de Ramos, um autêntico programa de índio.

Por outro lado, aquele irmão enlutado, sofrido, com o corpo e alma marcados por sequelas, estará desfilando em outra ala. Provavelmente catando papelão e trapos para se abrigar à noite ou mesmo cavando com as próprias mãos as ruínas do seu bairro, na esperança de ouvir uma voz, um sussurro, um sopro de vida, ou quem sabe resignar-se por encontrar um boné, um brinco, um colar, ou mesmo um braço ou uma perna que sinalize a presença inerte do seu ente querido. Mas o relógio da vida não para e cada um tem seu tempo certo e cronometrado para desfilar. Que as escolas vitimadas façam o melhor e deixem para lembrar do fogo somente na quarta-feira de cinzas.

Murillo da Villa
Enviado por Murillo da Villa em 29/03/2011
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