Rezas nas Madrugadas Quaresmais no País do Sul Global
Um frade franzino, envolto em veste talar que invoca o período do Medievo, desperta vigilância e é o feito do momento a partir de uma retórica que escapa às alocuções feitas por outros igualmente religiosos da práxis cristã.
A eloquência usada nas reflexões se mostra reacionária, excludente e profundamente misógina, uma vez que expõe a figura feminina da forma mais subserviente possível, contrastando muitas das práticas de libertação e consequente fortalecimento dos discursos patriarcais e patrimonialistas encetados por muitas esferas de uma sociedade dividida.
E o palco é o Brasil, um país que, outrora, estava na ambiência do chamado Terceiro Mundo, aquelas nações em vias de desenvolvimento. As riquezas e poderio colonial cabiam aos países do Primeiro Mundo, e os do Segundo eram denominados de socialistas, ligados à chamada Cortina de Ferro, os comunistas da URSS – extinta União Soviética.
Atualmente esses mundos inexistem tendo novas terminologias para a questão: o Sul Global e o Norte Global. Surgido no contexto da Guerra Fria, o termo Sul Global expressa não somente uma região geograficamente extensa, mas, evidencia uma característica histórica, política e sobretudo econômica relativas aos povos que sempre teimaram em lutar contra a opressão, a colonização e o autoritarismo dos mais ricos, fato atual, como se pode ver no mandatário americano do Norte, hoje travestido de senhor do mundo e “arauto da liberdade de expressão”.
Do Sul Global fazem parte as nações da América Latina, as africanas, os países da Ásia e os da Oceania. Todos com suas peculiaridades históricas, reveses políticos e profundas crises econômicas por conta de imposições e embargos, a exemplo do aferido aos cubanos, imposto pelos americanos há mais de sessenta anos!
E na seara da dominação de posturas teológico-políticas, confusas nas antemanhãs, são convidativas à oração e reflexão nos dias quaresmais com viés moralista. Contudo, a ausência de temas que afligem a vida dos orantes é perceptível nesses momentos penitenciais. Uma teologia moral é mais apregoada, em detrimento dos males que afligem o próprio povo que reza buscando salvação para esses incômodos, uma vez que não há respostas aos reclamos dos mais pobres.
Em recente homilia o frade disse que “Deus deu ao homem a liderança” e que “a mulher nasceu para ser auxiliar do homem”. Os índices de violência sexista cresceram assustadoramente no Brasil aumentando também as qualificadoras dessas agressões. Pernambuco é o segundo estado com maior número de mulheres assassinadas, cotidianamente surradas, vilipendiadas, mortas com requintes de crueldade perante seus filhos ante a inércia de grupos religiosos extremistas que ignoram tais fatos, relegando-os a uma passividade surda e agressiva, além da pregação pretensiosa do Frei corroborar os arroubos de um machismo imbuído de elementos quase divinais.
Ladeando a questão crianças são espancadas, idosos maltratados e esquecidos no seu ocaso existencial, jovens sem direito ao trabalho, comerciantes que exploram comerciários nos seus direitos mais básicos quando estes têm que cumprir jornadas extenuantes de forma silente. A tudo isto há uma cortina de fumaça que, muitas vezes, a reza matinal esconde e emudece.
O Brasil do Sul Global vivencia profunda desigualdade social entre quem tem muito e os que sequer conseguem comer três vezes ao dia. A marginalização econômica e política tem sido cada vez mais presente na vida do povo que reza sem, contudo, refletir ou perguntar sobre as consequências dos seus pedidos nesses momentos oracionais.
Orar, rezar, contemplar ou refletir são comuns a todos os credos. Ignorar as mazelas sociais e esperar que Deus a tudo determine é fanatismo capitaneado por líderes reacionários que ainda rezam contra alucinações comunistas enquanto ameaças constantes. Esses religiosos esquecem a profecia e anunciam um reino distante onde os que mais sofrem chegarão se se portarem como bons penitentes cristãos.
Outros clérigos também incentivavam a récita do terço. Ralph Della Cava diz que padre Cícero mandava que se rezasse o terço todos os dias de madrugada e no pôr do sol. Frei Damião de Bozzano caminhava pelas madrugadas nas ruelas e becos do poento Nordeste cantando e rezando com o povo simples. Antes destes, o padre Ibiapina percorreu parte da mesma região ensinando as rezas matutinas e também a pensar em como construir uma sociedade igualitária.
Chama atenção a prédica do supracitado religioso acerca da mulher o fato de que ele faz parte de um congregação religiosa fundada por uma mulher orientada por um grande bispo católico que acolhia as mulheres nas arquidioceses de São Paulo e Mariana.
Era um pastor com cheiro de povo e de ovelhas – no dizer do santo papa Francisco – que enxergava as mulheres como protagonistas de sua própria história e transformadoras de suas realidades nas periferias existenciais do Sul Global.