A SI, MESMO?
A SI, MESMO?
*Leo Barbosa
Amar ao outro como a si mesmo pressupõe que a forma como o amor é investido representa um modo de zelar-se quase perfeito. Porém, lembra-nos Freud que a maneira como nos amamos é perpassada por masoquismo, um sadismo dirigido a si. Não é o ideal da pureza e do sublime romance. Para amar o outro, é preciso suporta-se, aguentar até mesmo a ira que se volta contra si. Se não somos capazes de um autocuidado, não seremos capazes de nos permitir sermos cuidados pelo outro, porque enxergaremos nisso uma invasão. Se mesmo eu não me acolho assim, o que me faz pensar ser esse apto para me compreender e me aceitar na minha inadequação?
Narciso amou a imagem por pensar que era um outro. Por não se reconhecer, literalmente se afogou em águas também desconhecidas. A falta de autoconhecimento leva-nos aos abismos mais impensados. O ser idealizado é construído como o reflexo do lago no qual a figura mitológica se findou. Refletir não é flertar – é na medida do possível tocar na realidade, sem expectativas exacerbadas de que o outro será a solução para todos os nossos problemas, ele não é um dever, tampouco obrigação. É uma pluralidade dialética em que o argumento e o contra-argumento estão simbioticamente ligados.
Amar é exercício de ambiguidade. Ao passo em que busca a completude, necessita a instauração de vazio, por vezes. Só se ama na falta? Ou se aprende a querer o que se tem para que o desejo fomente o que se pode chamar de amor? É fato que é muito fácil almejar o perfeito, isto é, aquilo que está pronto. Mas, um escultor retira da pedra bruta sua arte pelo movimento da constante lapidação. Se um poeta é um fingidor, ele precisa fingir a matéria grossa das palavras, da amante. Dinamita-se, então, a dinâmica dos relacionamentos baseados na ideia de que dois se fazem um. “Dois”, na verdade, constituem um terceiro com o qual ambos deverão saber lidar.
Nesse ensaio, há apenas a tentativa de colocar em pauta o jogo de (re)construir situações e ter o cuidado para não sabotar o processo. Não raro, parece aos amantes a inviabilidade de um vínculo que seja real. É por ser geralmente tão suntuosa a atmosfera que suspendemos o êxtase como se quiséssemos guardá-lo. Na tristeza, expande-se como se, assim, pudesse ela ir embora mais rapidamente. Como reconhecer que essa ansiedade de viver não é descrença em si mesmo? Não somos nós merecedores dessa pulsão de vida, nas acepções diversas para além do Eros? Eros, ironicamente, expõe a face mais e mais – fora do mito original. E é a Psiquê que se retrai na ficção e na realidade.
Nesse contexto, o medo não deve ser paralisador, apenas um sinal de prudência e de respeito para com o outro e consigo mesmo. Não se deve esquecer da conservação da subjetividade a fim de cada qual ser livre à sua maneira, ser gente, ser pessoa, ser autêntico. É essencial termos alguém que nos atualize, nos autentique a cada dia, visando nos tornarmos não menos do que aquele que somos, porém ainda não sabemos sê-lo. Na verdade, esperamos esse alguém, alguém que nos seja farol, quando estamos apagados. Bússola, quando a nossa rosa dos ventos interior estiver quebrada. E estrada segura em momentos em que o atalho nos desviar para caminhos de pouca ou nenhuma sobriedade.
Amor sem paz não é amor. Embora o sofrimento possa erigir, sei-lá-o-que ou cá-bem-sei-o-que, há em rupturas um certo refazer-se que precisamos (des)cobrir. Nessa ambivalência, revela-se: quando assumimos que perdemos, passamos a ganhar. Enquanto isso, seguem-se os passos, mecanicamente, de por onde o outro vai para onde ele for. Não se consegue ouvir a música que traz recordação, e o sangue se atordoa porque antes se enlaçou. O que dói é a desconstrução de todas as expectativas, criaram-se sonhos, transcendeu-se a fronteira do mágico. Num mundo de fragilidades é fácil demais idealizar e é bastante difícil demolir os desejos.
Mas, em vez de se gritar, pode-se atribuir uma importância aos fatos sem que eles nos impeçam de andar. A vida é movimento, sem este é apenas existência. O Amor é um campo minado no qual prazer, gozo e desejo reclamam reparação.
Leo Barbosa é professor, escritor, poeta e revisor de textos.
(Texto publicado no jornal A União em 10/1/25)