EU, TU, NÓS

Eu, tu, nós

Chega o fim do ano e aquela enxurrada de festividades e confraternizações vem à tona. Quando aventada a possibilidade de levar pessoas de fora do ambiente de trabalho para um desses eventos, um colega logo disse: “não vou nem chamar minha mulher, pois sei que ela não vai, nem deixará eu ir”. Indignado com a situação, refleti com ele sobre a importância de ele estar presente, pois, ainda que se trate de um momento festivo, também faz parte do seu ofício. Mais: sobre o quanto não é saudável num relacionamento os envolvidos não terem a liberdade de ir e vir.

Um casamento (ou qualquer outro tipo de relação) em que não há uma dissociação entre as partes representa um contexto no qual imperam dependência e dominação. Dependência, por necessitar que o outro esteja sempre presente, sob o olhar vigilante daquele que reclama pelo poder. Essa necessidade de poder está atrelada à falta de amor-próprio, uma vez que é a presença do outro que, em tese, valida a existência da dominadora. Percebe-se a carência, como um bebê que chora quando não vê os pais por perto.

Em contrapartida, disse ao amigo que na relação entre minha esposa e eu há espaço para a liberdade de sairmos com nossos amigos, mesmo que um de nós não possa ir. Embora eu aprecie muito a presença da minha companheira, entendo bem que há momentos nos quais é melhor um de nós não comparecer. Se é verdade que um se soma ao outro, não é porque se tornam um só. Essa pode ser uma interpretação cristã literal. Ao se somar, dois tornam-se três: o “eu”, o “tu” e o “nós”. Se um não sabe ser sem o outro, então quem se é? Quem eram antes de se conhecerem? Quem serão quando um por algum motivo não estiver mais aqui?

Não é porque é o amor da sua vida que tem que ser a razão do seu viver. E penso que quem estabeleceu uma aliança com o outro não precisa de coleira. Eu não conseguiria viver numa relação de constante cobrança e vigília, mas nem por isso vivo “na promiscuidade”, “no mundano”. Se sou mundano, é porque sou do mundo. O contrário do mundo é o imundo. Se meu relacionamento é “aberto”, é porque sou o mais franco possível com ele, não é por estar copulando com quem quiser, embora não julgue quem escolhe assim viver, contanto que o outro não esteja sendo enganado. Acha isso “moderno” demais? Não importa. Está aí.

Dia desses uma amiga elogiou minha esposa por ela aceitar eu sair com amigos e amigas sem demonstrar ciúme. É preciso confiar, não às cegas, mas o suficiente para que o outro não se sinta como uma marionete. Da mesma forma como quando dois não querem, dois não brigam; quando dois não querem, dois não transam. E antes que digam “mas as pessoas vão falar...”. Sim, vão, vão falar muito e sempre, pois a maioria está mais ocupada vivendo a vida alheia do que a própria. E sempre vão falar, independentemente de ser homem com mulher, mulher com mulher, homem com homem. E por isso vamos deixar de viver?

Será que não é possível haver uma intimidade sem que haja sexo? Eu acredito que sim, e quem anda comigo também. Acredito estar tudo bem claro nas relações que construo. Quando não, faço questão de deixar claros os limites. Alguém poderia dizer que a vida é do meu colega e ele a vive como quer. Não é assim. Tenho empatia e escuta ativa. Ao perceber que relacionamentos assim causam sofrimento, sinto-me incomodado.

Há vários exemplos de pessoas que se anularam por viverem cerceadas. Seu/Sua parceiro(a) não gostava de sair, de viajar, sequer de ir a um cinema ou a um restaurante, e o outro era impedido ou se impedia de fazê-lo. Essa forma de viver causa angústia, tem promovido adoecimento psicofísico. Que aos parceiros sejam permitidos seus momentos de solidão ou “solidão tumultuada”. É preciso saber ser de si para ser para o outro, não DO outro.

Seríamos muito mais felizes se não nos enxergássemos como propriedade, na qual muitas vezes o outro joga lixo – como um terreno baldio. E quem vive num grande vazio existencial recorrentemente faz isso, não apenas com o marido ou esposa, também com os filhos e todos ao redor – quando ainda resta quem queira estar por perto de alguém assim...

Leo Barbosa é professor, escritor, poeta e revisor de textos.

(Texto publicado no jornal A União em 13/12/2024)

Leo Barbosaa
Enviado por Leo Barbosaa em 13/12/2024
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