Algumas linhas sobre a primazia do direito à vida e à dignidade sobre os direitos de propriedade: UMA ANÁLISE SOB A LENTE DO MATERIALISMO HISTÓRICO.
Adriano Espindola Cavalheiro
A primazia do direito à vida e à dignidade sobre os direitos de propriedade é proclamada como um princípio fundamental em muitos sistemas jurídicos, especialmente aqueles que adotam uma abordagem baseada nos direitos humanos. Esse princípio sugere que, em situações de conflito entre o direito à vida e à dignidade humana e os direitos de propriedade, os primeiros deveriam prevalecer. No entanto, uma análise crítica fundamentada no método marxista do materialismo histórico revela que, em sociedades capitalistas, a realidade prática frequentemente desvia dessa teoria.
Antes de continuar, importante, explicar o que é esse método. O método marxista do materialismo histórico é uma abordagem teórica desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels para analisar as sociedades humanas e suas transformações ao longo do tempo. Esse método parte do princípio de que a base material, ou seja, as relações econômicas e as forças produtivas, é o que determina a estrutura social, política e ideológica de uma sociedade. Em outras palavras, as condições econômicas e as relações de produção são a infraestrutura que molda a superestrutura, composta por instituições políticas, leis, religiões e ideologias.
No materialismo histórico, a história é compreendida como uma sucessão de modos de produção, cada um caracterizado por suas próprias contradições internas e lutas de classe. Essas lutas são o motor da mudança social e histórica, levando eventualmente à transformação de um modo de produção em outro. Por exemplo, a transição do feudalismo para o capitalismo foi impulsionada por conflitos entre as classes dominantes e emergentes. Assim, o materialismo histórico oferece uma lente crítica para entender como as estruturas econômicas influenciam as relações sociais e como essas relações podem ser transformadas através da ação coletiva e das lutas de classe.
Dito isto, voltemos ao tema deste estudo, que faz a análise dos princípio da primazia do direito à vida e à dignidade sobre os direitos de propriedade, na sociedade capitalista.
Fundamentos Jurídicos e a Realidade Prática
Direitos Fundamentais: Embora o direito à vida e à dignidade sejam considerados direitos fundamentais e inalienáveis, consagrados em Constituições e tratados Internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a prática jurídica não raramente reflete a supremacia dos interesses de propriedade privada, que são centrais ao capitalismo.
Constituições Nacionais: No Brasil, a Constituição Federal de assegura o direito à vida e à dignidade como princípios fundamentais. Contudo, a aplicação prática dessas garantias é frequentemente mediada por interesses econômicos e de classe que priorizam a propriedade privada e o lucro.
Interpretação Judicial: Os tribunais aplicam o princípio da proporcionalidade para decidir conflitos entre direitos. No entanto, essa aplicação é muitas vezes enviesada, favorecendo aqueles com maior poder econômico e influência política, demonstrando como o sistema jurídico pode refletir as desigualdades inerentes ao capitalismo.
Exemplos Práticos e Análise Crítica
Desapropriação: Em teoria, a desapropriação para obras públicas deveria equilibrar interesses privados e o bem comum. Na prática, como observado em casos de grandes projetos de infraestrutura, as comunidades mais vulneráveis são frequentemente deslocadas sem compensação justa, refletindo a lógica capitalista de priorizar o desenvolvimento econômico sobre o bem-estar humano.
Direito à Moradia: O caso Pinheirinho exemplifica como, em um sistema capitalista, o direito à moradia pode ser subordinado aos interesses de especulação imobiliária. A desocupação violenta da área destacou a falha em proteger a dignidade humana quando confrontada com interesses de propriedade.
Saúde Pública: Durante emergências de saúde, o acesso a medicamentos e tratamentos é frequentemente mediado por interesses de propriedade intelectual e lucro das empresas farmacêuticas. No Brasil, a quebra de patentes em situações de emergência é uma exceção que confirma a regra de que o lucro frequentemente se sobrepõe à saúde pública.
Comunidades Quilombolas e Terras Tradicionais: A luta das comunidades quilombolas pelo reconhecimento de suas terras é um exemplo de como os direitos de propriedade coletiva são constantemente ameaçados por interesses capitalistas de exploração de recursos, evidenciando a dificuldade de garantir a dignidade e a cultura em um sistema que prioriza o lucro.
Considerações Éticas e Sociais
A análise fulcrada no materialismo histórico permite entender que a primazia do direito à vida e à dignidade sobre os direitos de propriedade é frequentemente uma promessa não cumprida em sociedades capitalistas. Somente quando ocorrem mobilizações sociais, como parte da luta de classes, é que esse princípio pode se impor, ainda que de forma transitória. Isso ocorre porque, na sociedade capitalista, as estruturas econômicas e políticas estão predominantemente orientadas para a proteção e a manutenção da propriedade privada e dos interesses do capital.
As mobilizações sociais, impulsionadas pela luta de classes, atuam como forças que desafiam o status quo e pressionam por mudanças que priorizem o bem-estar humano sobre os interesses econômicos. No entanto, essas conquistas são frequentemente temporárias, pois o sistema capitalista tende a reabsorver e neutralizar tais avanços através de mecanismos legais e econômicos que reforçam a lógica do capital. Assim, a verdadeira primazia do direito à vida e à dignidade só pode ser plenamente alcançada em um sistema que transcenda as limitações impostas pelo capitalismo, promovendo uma reorganização estrutural que coloque os direitos humanos no centro das políticas sociais e econômicas.
Assim, o sistema jurídico e as políticas públicas numa sociedade gerida para proteger e gerenciar os interesses do capital, tendem a refletir e reforçar as desigualdades estruturais, priorizando os interesses econômicos de elites sobre o bem-estar humano coletivo.
Conclusão
O equilíbrio entre direitos fundamentais e direitos de propriedade em sociedades capitalistas é frequentemente inclinado em favor do capital. A aplicação desse princípio, na prática, requer uma transformação estrutural que desafie as bases do capitalismo e promova uma justiça social genuína, onde a dignidade humana não seja sacrificada em nome do lucro.