Ainda não chegamos no fundo do poço
As torcidas de futebol estão virando hordas de delinquentes, que agridem, roubam, incendeiam. Foi assim entre as torcidas do Peñarol e times cariocas no Rio de Janeiro. Houve feridos, mas não chegaram a se matar, como já aconteceu em outros confrontos. Poderia ter sido pior.
Os juízes do Mato Grosso do Sul suspeitos de vender sentenças são flagrados com milhões em cédulas dentro de casa. As investigações estão em curso, ainda não se revelou a natureza das sentenças que foram vendidas. Será que poderia ter sido pior?
Um hospital recebe um prêmio de distinção atribuído pela própria rede hospitalar a que pertence, por supostos bons serviços. Mas depoimentos de pacientes mostram que o serviço prestado é sofrível: esperas além do admissível, negligência no atendimento, contaminação hospitalar e até risco de septicemia. O que não impede que o hospital seja uma das maiores empresas da região, e esteja sempre em ampliação, atestando as boas finanças. Poderia ser pior, ele não está transplantando órgãos infectando os receptores com HIV, como acontece no Rio.
Os serviços das empresas privatizadas, de setores estratégicos como energia e saneamento, estão cada vez piores. O cliente parece ser tratado como um otário a ser enganado, com expedientes que vão desde supostos serviços de atendimento que não atendem até contas superfaturadas. Mas poderia ser pior. Em alguns locais o serviço ainda é prestado, o que não aconteceu no apagão de São Paulo.
Funcionários de carreira estão acabando, no ensino, na saúde, noutros serviços essenciais como energia, saneamento, transportes, comunicações. Estão virando todos temporários, precarizados, sem direitos nem segurança para amadurecer profissionalmente. Custa mais barato, e logo não existirão mais aposentados do serviço público. Mas poderia ser pior. A segurança pública e o judiciário ainda não foram formalmente privatizados. Talvez não demorem a sê-lo.
Queimamos as florestas, despejamos esgotos, óleo e plásticos no mar, poluímos as águas, saturamos a atmosfera com os gases estufa, acabamos com os habitats naturais. A natureza parece ainda ter paciência conosco: providencia chuvas, ajunta o plástico em ilhas flutuantes, envia-nos eventos extremos para alertar-nos, engendra uma pandemia para nos advertir. Poderia ser pior. A chuva poderia não vir apagar o incêndio, poderemos deteriorar irremediavelmente as águas, o aquecimento global pode ser catastrófico e incontrolável, a nova pandemia pode ser muito mais mortal. Mas poderia ser pior; o desastre final ainda não é para este ano.
Um único país, obcecado pelo “destino manifesto”, quer dominar o mundo a qualquer custo, seja pelas armas, pelos bloqueios e retaliações econômicas, pelas guerras cognitivas e lawfares, pela disseminação de ilusões e mentiras, pelo fomento a guerras por procuração e guerras genocidas. Mas poderia ser pior. Há nações e povos que ainda resistem, valorizam a liberdade e a justiça mais que o poder e a ilusão.
O deus mercado tomou conta da civilização. Está nas igrejas, nos governos, na cultura, nas artes, na educação, na saúde, na justiça... É um deus inclemente, castiga cruelmente os que não se submetem, escraviza homens e a natureza. Poderia ser pior, ainda existem os que creem num outro Deus, que inspira o bem da humanidade.
Ainda não chegamos no fundo do poço. Mas caminhamos depressa para lá.