A mosca e a janela de vidro

Na sala de uma moradia há, de um lado, uma ampla janela de vidro, fechada, que dá para um iluminado jardim, com apetitosas flores e frutos. Do outro lado da sala, uma porta dá para o interior da casa, mais escuro que o jardim. Duas moscas tentam chegar ao jardim. Malogradas, batem-se repetidamente contra o para elas invisível vidro. Já estão extenuadas, quase mortas. Uma delas repousa um instante, e volta a bater-se contra o vidro. Até tombar sem vida. A segunda, resolve usar outra forma de percepção que não seja só a visão, que lhe mostra o jardim, mas não o vidro. Olha em volta, vê a porta, não tão atraente, mas uma possível saída. Voa para ela, consegue chegar a outro aposento da casa, depois a outro, até encontrar uma janela aberta, e assim sai para o ar livre. Se procurar, ainda vai poder encontrar o jardim.

Os seres humanos parecem comportar-se como estas moscas. A janela de vidro intransponível, contra a qual nos batemos, ignorando-a ou negando-a, é o cuidado que deveríamos ter para com a natureza, que nos provê a vida, e a solidariedade para com o próximo, que nos provê a justiça e a paz. A teimosia em bater-se contra o vidro é a cobiça, a compulsão de ter, de poder, de competir, de sobressair-se. O jardim luminoso que nos seduz talvez seja o sonho de emancipação, de paz, de fraternidade. O caminho alternativo – a menos fascinante e mais longa porta de saída para a sobrevivência, a liberdade e o devir esperançoso – é o domínio de nossas pulsões, o discernimento, a sobriedade para com a natureza, a compreensão dos inevitáveis limites, a amorosidade para com o próximo. Tarefa que nos parece assaz penosa.

Se teimarmos fazer como a mosca que se debate impulsiva contra o vidro, vamos acabar como ela. Temos imitado esta mosca negligentemente suicida: na ânsia de dominar, de enriquecer, de se sobressair. As crises que a humanidade vivencia hoje – climática, hídrica, sanitária, política, social, educacional, cultural, religiosa, de segurança, de guerras, de foragidos, de desinformação, ética, moral – e a impotência para resolvê-las escancaram o quanto estamos agarrados ao papel da mosca suicida.

A humanidade há de ter um lado mais evoluído, que a distinga da mosca que não é cega da visão, mas é cega de capacidade de reflexão e de cooperação. As crises que vivenciamos hoje não resultam de um sistema econômico cruel, de uma nação imperialista guerreira, de um arranjo político e social falido. Todos estes desatinos é que são crias da índole humana, da teimosia de continuar batendo-se contra o vidro da janela, ao invés de refletir para encontrar uma saída viável. Infelizmente, esta cegueira de bom senso é alimentada por um avançado sistema de manipulação da opinião, que tange multidões, dissemina mentiras e semeia desesperança, reduzindo o gênio humano ao mesmo comportamento da mosca suicida.

Mas, com certeza, o ser humano é mais que a mosca cega de discernimento. Só é preciso lembrá-lo disso.