A letra visível x a letra invisível
O protagonismo feminino nunca foi um mar de rosas dentro do cenário mundial. Tudo leva a crer que o projeto de chancelar a mulher como vilã nas relações de gênero ganhou força desde os primórdios ao se afirmar que Eva induziu Adão a comer do fruto da árvore proibida, surgindo, assim, o pecado original.
Ao falar em pecado, citamos a obra “The scarlet letter” (“A letra escarlate”), do norte-americano Nathaniel Hawthorne, que retrata fatos do século dezessete (XVII) e explora bem esse tema, quando a protagonista Hester Prynne é sentenciada à prisão e também a exibir a letra “A”, de adúltera, no seu peito pelo resto da vida.
Hester é casada com um médico muito culto, que foi dado como desaparecido. Depois de ser capturado por indígenas, ele volta sob o nome de Roger Chillingworth e encontra um cenário sombrio: sua mulher grávida e condenada por “adultério”. Mas para Hester, ele havia morrido. E ela, sentindo-se à mercê do destino, tem um caso amoroso com o reverendo Dimmesdale, seu pastor.
Ao engravidar do reverendo, a vida de Hester se transforma num eterno caos. Ela se recusa a revelar que Dimmesdale é o pai da criança, temendo pela reputação dele. Então, vê-se julgada pelo código puritano da Nova Inglaterra e levada a cumprir pena na cadeia de Massachusetts. De lá, ela sai, mais tarde, com o seu bebê no colo, a pequena Pearl (Pérola), para espanto dos curiosos.
Pois bem; a letra “A”, de tom escarlate, que a suposta adúltera Hester exibe no peito (no século XVII) é visível a todos, inclusive foi bordada e afixada por ela por força da lei. Hester sai com vida dessa história, apesar de ter subido ao pelourinho. E Roger, seu marido, reconhece que errou e promete não se vingar dela.
Esse fato difere muito dos que vemos no mundo atual, onde a letra que se borda não é a letra “A”, mas uma “letra M”, de morte, de tom obscuro – invisível – “bordada”, de forma sórdida, pelas mãos do malfeitor no corpo da vítima de feminicídio, sem que ela perceba. Tudo isso em pleno século vinte e um (XXI); e ocorre, às vezes, por um motivo banal que pode ser um simples “Não” proferido pelos lábios de uma mulher.
Diante de tanto absurdo, emerge a pergunta: o que mudou do século XVII para o século XXI em relação a convivência homem/mulher?
Talvez esteja em desuso “morrer de amor” por alguém. Parece que uma “nova ordem” do mundo machista vislumbra o lema “matar por amor”. É assim que a teoria do “sexo frágil” – que dá à luz homens e mulheres – cai por terra quando a mulher tem demonstrado força e superação em meio a atos monstruosos cometidos por aqueles que ainda têm suas raízes fincadas no campo pantanoso e obscuro da vida.
Piedade é a palavra.