DEMASIADAMENTE HUMANOS

Demasiadamente humanos

O ser humano é o único animal que sabe que irá morrer, mas vive como se não soubesse e, depois de passado o tempo, se indigna por não tê-lo aproveitado conforme gostaria. Algumas pessoas têm tanto medo de morrer que não vivem. Outras, antecipam o tempo com o autoextermínio, não por não desejar mais a vida, mas por não suportar os sofrimentos da existência. No livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, a médica de cuidados paliativos, Ana Claudia Quintana Arantes, reflete sobre a vida e sobre como enfrentar dignamente a inevitável das gentes quando vier a bater a porta de nossa alma.

Muitos reagem como se Deus fosse injusto, até os mais religiosos, por se sentirem abandonados quando sentem a travessia ser inadiável. Outros amargam com a infelicidade de não ter sequer alguém que lhes segurem as mãos na hora da partida. “A maior parte de nós é o que os outros fazem de nós. Somos esculpidos com base na percepção do outro. O que mais fará falta na morte de alguém importante é o olhar dessa pessoa sobre nós, pois precisamos do outro como referência de quem somos”, diz Arantes na obra supracitada. Como ser sem o outro? Se estamos em constante transformação, se a pessoa amada já não está materialmente aqui, ao menos podemos recorrer às recordações, às memórias que foram guardadas para nos constituirmos na relação, seja um pai, mãe, avô/ó, amigo/a, esposo/a.

Diante da morte, nunca sei o que dizer. Acabo me limitando a “meus sentimentos”, pois defendo que ninguém tem direito de voz na dor do outro. Não sabemos o quanto a partida representa para quem perdeu. Pode até se sentir aliviado, se o ente estava em sofrimento. Para uma mulher que a vida inteira sofreu com a violência do finado, pode ser outra forma de alívio. Na ansiedade por dizer algo que seja reconfortante, muitos são indelicados: “já estava velho”, “Deus quis assim”... Quando é um animal de estimação: “depois você compra outro...”. Um/a companheiro/a: “ah, Fulano/a é jovem, logo encontra outra pessoa...”. Gente, não somos descartáveis para quem nos ama. É horrível pensar que somos substituíveis. Não somos feitos apenas de carne e ossos. Cada pessoa carrega consigo um universo de possibilidades, de sonhos, vislumbres, quereres. Quem está sonhando junto pensa no que viveu e poderia ter vivido.

O filósofo Epicuro dizia não ter medo da morte, porque “enquanto eu sou, a morte não é; e quando ela for, já não serei” e indagava por que temer o que não pode ser enquanto é. Mas, confesso, eu temo. Gosto de viver. E temo, sobretudo, deixar obras inacabadas, não me refiro apenas a livros, mas a experiências. O mundo é feito para explorarmos, o nosso interior infinito, assombroso, repleto de mistérios, de amar, de viajar, de experimentar sabores diversos.

E tenho medo da morte de quem amo: minha família, meus amigos. Desde quando era criança, chorava mesmo com a morte de desconhecidos, ao ver as notícias pela TV. Ficava revoltado. Até hoje: a notícia da queda do avião da Voepass em Vinhedos me deixou dias com uma grande vertigem. Não pude como não imaginar o desespero de quem estava a bordo, dos familiares quando receberam a notícia, e as inimagináveis sequelas psicológicas de quem fica.

A vida é muito efêmera. Isso não é clichê, embora ordinário. Hoje estamos aqui e num sopro tudo se esvai. E vivemos entre aproveitar o hoje, sem discurso hedonista, com a esperança de nos resguardarmos para o amanhã. É preciso preservar o instante-já, olhar com carinho para o retrovisor para estarmos conciliados com o vivido, sem amargurar, com orgulho até mesmo dos erros, ao mesmo tempo em que pensamos neste virginal futuro repleto de sementes a desembocar na foz da alegria de viver.

Como sabemos que vamos morrer, devemos aproveitar a vida com o que ela tem a nos oferecer e, principalmente, ofertarmos – na medida do possível – o que temos de melhor, para que lembrem de nós com carinho. Só morreremos quando o último ser no mundo que nos carrega no peito também falecer. Todo amor é atemporal, amemos, pois, para romper a lógica do tempo, como se a bússola estivesse na horizontal. Ter consciência da nossa mortalidade é a chance de sermos humanos, demasiadamente humanos.

Leo Barbosa é professor, escritor, poeta e revisor de textos.

(Texto publicado no jornal A União em 23/8/24)

Leo Barbosaa
Enviado por Leo Barbosaa em 23/08/2024
Código do texto: T8135094
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