Os limites da máquina humana

O peso das sacolas e o calor sufocante incomodavam. O sol inclemente castigava sem piedade o destemido de cabelos alvos, já bem passado dos setenta. Subiu bufando a interminável ladeira, imaginando algum argumento plausível para justificar aquela desnecessária aventura pedestrianista, verdadeira maratona profissional para os mais experientes da vida. Contava impacientemente as quadras percorridas, uma forma amenizar o arrependimento e diminuir mentalmente a distância até o destino. Chegou exausto, antevendo-se refrescando o cocuruto no providencial ventilador. Notou que havia algo de diferente na casa. Permaneceu estático por um momento, ao constatar a ausência do carro na garagem. Comunicou imediatamente a autoridade policial da suposta ação criminosa. Foi quando reparou o volume no bolso da calça. E para sua surpresa e preocupação, era a chave do veículo, esquecido estacionado na vaga do idoso no supermercado.

Em determinado momento da vida, se faz necessário reavaliar com certa frequência os limites do corpo. Ainda que, por influências de genética, estilo de vida, moléstias congênitas ou adquiridas e outras variáveis a que todos estaremos sujeitos, os primeiros indícios de degeneração física ou mental devem ser investigados de imediato. O esquecimento pontual de nomes, dados diversos, lista de compras e atividades do cotidiano poderia ser considerado como dentro da normalidade, mesmo em pessoas jovens. O problema é quando o fato se mostra recorrente, causando transtornos às atividades laborais ou sociais. Que o diga o presidente norte-americano Joe Biden, acometido por lapsos cognitivos frequentes, que provocam indesejáveis constrangimentos.

Os efeitos de doenças degenerativas podem ser minimizados e estabilizados, se diagnosticados com antecedência e tratados adequadamente. É preciso, porém, que o indivíduo reconheça sua condição de portador desse tipo de enfermidade e se possível, pratique exercícios específicos, que venham a minimizar o risco de incidentes. Conhecer e principalmente, reconhecer as restrições naturais do organismo garante uma maior qualidade de vida, além de preservar a saúde. É peremptório identificar o momento certo de restringir progressivamente determinadas atividades do cotidiano, seja o caminhar, correr, pedalar e até mesmo a condução de veículo automotor.

Em tempos de modernidade galopante, os idosos são os mais afetados pelas exigências tecnológicas, uma vez que existe a necessidade de interação com as tecnologias disponíveis. Assim acontece nas transações bancárias, comerciais, agendamentos, recadastramentos e outras, que muitas vezes requerem o auxílio de pessoas com conhecimento na área. Por conta das dificuldades inerentes à idade, a experiência dos anos de vida está sujeita ao etarismo, uma forma subliminar de discriminação, que quando constatada, deve ser veementemente repudiada.

Enfim, a máquina humana é extraordinariamente perfeita, porém, sujeita a defeitos ao longo de sua vida útil. Temos prazo de validade. Se porventura as revisões e manutenções preventivas não forem efetuadas de acordo com o manual de sobrevivência, com o passar do tempo certamente apresentaremos problemas. Nossa existência será determinada pelas atitudes positivas na preservação dessa maravilha da natureza. E se vierem resquícios de esquecimento, que sejam dos momentos ruins da vida. Ou de alguma chave qualquer no bolso.