PRODUTOS DA PRUDÊNCIA
Produtos da prudência
A prudência é a condição essencial de todas as virtudes. É o equilíbrio entre o sensato e a insanidade. Se ela não prover, o que é qualidade passa a ser irresponsabilidade. Alguns a desconsideram, pois que mérito há em cuidar da própria saúde? De agir para não causar o dano a si mesmo? De fato, o que dará valor são as circunstâncias envolvendo o alheio.
Notemos que um valor sempre agrega outro, porque pensar no outro também se constitui um altruísmo. Mas, Sartre disse: “O inferno está cheio de boas intenções”. Podemos chamar de bom senso e assim definir como uma deliberação disposta sobre o maniqueísmo (o bem e o mal) em que o homem agirá conforme as suas convicções e/ou horizontes de sentido. O que construirá o caráter de uma pessoa é o desdobramento das consequências de suas escolhas. Como agir? Estar a serviço de boa vontade é se unir à inteligência? Não há como generalizar. Nem sempre o nosso bel-prazer está acompanhado dessa inteligência. São Tomás enxergou quatro virtudes cardeais que devem ser regidas pela prudência: a coragem, a temperança e a justiça, ausente dela essas virtudes seriam inexatas (ainda mais) e cegas. Mais uma vez, faz-se nítida a comunicação entre os valores.
Uma pessoa prudente não é apenas atenciosa ao que acontece, mas ao que pode acontecer, paciência e antecipação são elementos indissociáveis ao nos referirmos ao prever e ao prover. É necessário maturidade para agir com precaução. Uma criança a princípio não diferencia o mal (o erro) do que pode fazer mal (perigo, dano); isso explica por que muitas crianças são ou serão impertinentes. Observemos se há negligência dos pais para com os filhos, que por vezes são permissivos demais e relapsos, perdendo de suas crias a figura de afeto, como sinônimo de lugar onde podemos falhar e nos redimir, para se tornarem objetos de afetação, dano.
Mas, não é somente dessa forma que conseguiremos permanecer no planeta. A humanidade deverá compreender outra forma de prudência se quiser se perpetuar. Tomar consciência de que, ao jogar um papel, um saco plástico em lugares indevidos, estará contribuindo para uma possível catástrofe. Depois culparão Deus. É tão fácil transferir nossa culpa. Construir edifícios e casas fora dos padrões de segurança e depois dizer que Deus quis que um desmoronamento acontecesse, que chegou a hora de Fulano morrer... Schopenhauer dizia que o ateísmo nasce no mundo quando pregamos um Deus cruel, em um mundo dilacerante, no qual a redenção e punição combinam para além da rima.
Então... abriram a porta da vida, o desafio está lançado. Cada passo desconhecido. Até que ponto seremos incansáveis? Quem nos suprirá essa vontade de ser, de estar? Com a inexperiência compraremos a experiência. Quando ser razão? Quando ser emoção? Por que não ambos concomitantemente? Num dado momento, eclodirão muitos questionamentos e a forma de encarar essas indagações constituirá nossa filosofia. Trabalhemos para não descuidar do ser humano que somos e podemos ser.
A humanidade quer evoluir, mas o indivíduo sequer consegue ser honesto consigo mesmo. É preciso se curvar, ou melhor, se sobre-erguer diante das próprias fraquezas. “O conhecimento de si mesmo é a mãe de todo conhecimento”, disse o poeta líbano-americano Khalil Gibran. Em contrapartida, o escritor Oscar Wilde afirmava que somente quem é superficial conhece a si mesmo. Quem nada na superfície não entende a beleza de ser profundo, mesmo com toda a angústia, com a falta de fôlego que nos consome, mas também nos lapida. Aqui reside o artista, que dissimula para criar e na criação simula para nos levar à tona, num processo de mergulho nas próprias mazelas e retorno a si.
Se olharmos com calma, observaremos que até o ser humano mais incoerente e aparentemente imprudente está traçando um propósito para sua vida. Todavia, em geral, nos especializamos em mascarar as marcas dos nossos problemas por meio de subterfúgios que vão desde uma agenda atolada de atividades até uma espécie de fanatismo religioso. São formas de tentarmos nos agarrar a algo para não parecermos tão imprudentes e irresponsáveis. Mas como bem julgar a coerência enxergando apenas uma linha de um longo texto?
(Texto publicado no jornal A União em 31/05/2024)