Hipocrisias

Não, não sou escritor. Sou autor, aspirante a escritor. Sim, considero-me poeta. Há tempos contraí o delírio dos poetas, que sonham acordados, e que enxergam o avesso do mundo. Mas não sou ainda um escritor. Estou a caminho de sê-lo, vamos ver se chego lá. Isabel Allende diz, muito apropriadamente, que para dizer-se escritor é preciso já ter publicado ao menos três romances. Ao publicar meu primeiro ─ e único até o momento ─, compreendi o que ela quis dizer. Quanto aprendi com esse primogênito! E quanto ele me mostrou o que ainda tenho a aprender! Ele me deu a sensação de que eu fora capaz de consertar a resistência do chuveiro, mas não por isso possa considerar-me um eletricista. Seria presunção, hipocrisia.

Então censuram-me: “Você está se desvalorizando, subestimando seu talento”. Será? Tenho algum talento? Sim, acho que tenho. Ele se revelou ainda no ensino fundamental, quando surpreendia professores e colegas com ocasionais textos e tiradas inspirados. Era como o brilho fosco e fugaz de uma gema bruta coberta pela pátina da ferrugem. A vida ─ ou fui eu mesmo? ─ não calhou os acasos para remover a pátina, lapidar a gema. Imprescindíveis para revelar o brilho. Agora, liberado das outras obrigações, dedico-me a tentar remover a pátina incrustada. Aspiro aperfeiçoar o autor, alcançar o escritor. Tarde! Ainda terei tempo e disposição?

Seria excesso de timidez? Incapacidade de compreender que a vida é feita de convicções e ilusões? Ou seriam hipocrisias? Quanto preferimos nos satisfazer com a aparência ao invés de enxergar a essência? A aparência é flexível, podemos adaptá-la conforme nosso gosto, nossa necessidade, o gosto do outro. A essência é a verdade, implacável, gostemos ou não. Então fazemos de conta. Somos hipócritas. A civilização atual é a civilização da hipocrisia. Martirizamo-nos com guerras, miséria, corrupção, tiranias, mas não abrimos mão de privilégios, mentiras, orgulhos e ostentações. O parecer, o ter e o poder são mais toleráveis que a rigidez da essência, da verdade.

Somos hipócritas até na denominação que nos atribuímos: Homo sapiens. Temos sapiência? O que temos, que nos distingue, é apurada racionalidade. É ela que nos faz ora sapientes, ora dementes. Somos sapiens e demens. E parecemos estar vivendo a civilização da demência. A racionalidade empenhada na desinformação, na escandalosa acumulação de riqueza por poucos, na depredação da Terra e da sensibilidade humana, nas guerras de conquista, na destruição da ética, da espiritualidade.

Não são só os falsos escritores: são falsos democratas, falsos profetas, falsos pensadores, falsos libertadores, falsos eruditos, falsos artistas. Habituamo-nos à falsidade e à hipocrisia. Até a cultura e a arte tornam-se falsas. Perdeu-se a autenticidade, o significado, a essência. Mas um lampejo da essência ainda arrebata mais que todo o brilho falso da aparência. É o lado Homo sapiens a resistir.

As hipocrisias são efêmeras. Se sobrevivermos a elas, logo nos perguntaremos como foi que nos metemos nesse desastrado caminho.