LUGAR DE FALHA
LUGAR DE FALHA
Hoje gostaria de assumir meu lugar de falha, que é atravessado pela fala, pelo interdito da voz, que, represada, irrompe numa agressividade, numa (im)pulsão de vida e morte. Meu horizonte verticalizado pela ânsia de querer ser gente, pelas exigências de uma sociedade inalcançável, cuja utopia se esvai para dar vez à distopia. O caos instaurado corrompe nossa humanidade, fazendo-a crer que o comum é normal, e a rotina é ser errante com convicção. Diante disso, clamo pelo direito de ser falho e não ser sentenciado.
Sentenciado por não conseguir estudar o tanto que gostaria, pois de quando em quando as atribuições de trabalho consomem essa necessidade pessoal e profissional de alcançar espaços tão almejados. E confesso o cansaço instaurado pela autocobrança, pelas vezes em que fui vencido pelos milhares de distratores, faltando-me o foco imprescindível. E vejo que também falho por reproduzir lugares-comuns de uma sociedade que disseminou a ideia de que tudo é possível – basta ter “foco” para conseguir absolutamente tudo que se deseja.
Foco, então, nessa autossentença que não me condena, mas recai sobre a ambivalência de ora ser motor, levando-me mais longe, ora ser como corda, puxando-me como forma de me manter no mesmo local. Viver é como um espinho enterrado na pele inflamando, fazendo o exercício de se expulsar e ao mesmo tempo curtir o incômodo e se enganar por se sentir seguro dentro da epiderme. Mas dizia Rubem Alves que ostra feliz não faz pérola. É preciso o desagrado, a invasão de um grão de areia para que molusco reaja adornando o grânulo até se tornar objeto artesanal e precioso.
Porém, nos maquinamos, quando o que necessitamos é de gestos poéticos. E gestos poéticos não são produzidos em massa. Desejaria que fossem, para que a palavra do bem promovesse o bem da palavra, bem aventurando os que estão perdidos em si e de si. A vida apresada nos sequestrando, tornando nossos sentimentos estrangeiros e a leitura desse idioma marcada por xenofobia. É que do avesso ficamos aversos a interpretações adequadas, então sentimos a vontade de desistir, no momento em que é necessário reexistir e aprender novos idiomas ou aperfeiçoar o próprio para conceber-se e, então, perceber-se abarcando inclusive os naufrágios de si.
O lugar de falha é o espaço da autenticação, onde as máscaras caem para que se possa (re)conhecer a verdadeira face, caminhar sem o peso excessivo das aparências, porque estas sempre estarão presentes para vislumbrarmos a harmonia possível. Por isso precisamos ser educados para a coragem: assumir as falhas e declarar o direito de ser frágil. Retirar a armadura, tão maior do que o cavaleiro, que é tão menor quanto a enormidade da vida com suas desmensuradas possibilidades e limitações – impostas e autoprescritas.
Anuncio: estou em processo de feitura. Em contínuas reformas. Sem previsão para encerrar as obras – da fala ao gesto que não se conclui. Sendo rascunho, sendo riscado e arriscado. Por vezes, vento de garrafa, por outras; tornado cego. Recebo ares de todas as direções e com eles inflo minha vivência. Enquanto retesado em não saber conduzir a força dos vendavais, passo a sentir-me sorvido pelas rosas.
Meu lugar de falha também é o lugar do acerto. Quando eu conseguir apre(e)nder tudo que escrevo já sentirei que avancei muito, pois escrevo mais para formar-me do que para informar. As palavras são para mim uma placenta. O mundo é um útero, que me protege e me expulsa para a vida. E meu lugar de fala só tem sentido quando antes de me ouvirem eu me escutar. Mas nisso a falha não é só minha. A falha é nossa.
Leo Barbosa é professor, escritor, poeta e revisor de textos.
(Texto publicado no jornal A União em 05/04/2024)