Posso Ajudar?
"Ajudar" é uma das tarefas mais difíceis desse mundo, porque, não raro, implica julgamento.
Outro dia eu estava dentro do trem metropolitano em São Paulo, no sentido Jundiaí - Barra Funda. Um rapaz muito jovem iniciou sua milonga (olha eu, julgando) sobre o filho necessitar de fraldas descartáveis e leite Nan (quando o meu próprio filho nunca contou com esses mimos). Disse que a esposa havia falecido de COVID e que ele e a criança estavam há dois dias sem comer e sem dormir. No entanto ele caminhava com a criança no colo, indo e voltando no vagão em movimento, com agilidade e energia surpreendentes. A criança, muito vivaz, não devia contar três anos de idade, mesmo assim, caindo uma cédula no chão, ele a inclinou ao máximo para que ela pegasse a nota sem precisar deixar o seu colo. Imagine a manobra... Outro detalhe me chamou a atenção: a tatuagem, entre tantas outras, de um cifrão que ele ostentava no pescoço. E eu sempre me pergunto qual a ordem de prioridade deveria ocupar uma tatuagem na vida de alguém que hipoteticamente passa por privações extremas. Comecei a analisar a arrecadação proporcionada pela estória que ele contou: em menos de dez minutos, cinquenta reais. Iniciei uma pequena contabilidade mental, multiplicando tempo, a quantidade de portas dos vagões e os respectivos cifrões. Se ele realmente estava precisando pedir, em pouco tempo chegaria à conclusão de que pedir é melhor do que trabalhar. Por mais que, às vezes, pedir dê muito mais trabalho do que trabalhar. Enfim, julguei novamente.
Há, segundo a prefeitura paulista, uma "outra São Paulo" dentro de São Paulo. A São Paulo dos marginalizados, dos desvalidos, dos sem-teto. Você caminha pelo centro da cidade, onde (há nem tanto tempo assim) imperava alguma ordem, limpeza e (por que não?) certo charme; mas as calçadas estão bombardeadas por fezes humanas. O cheiro de urina predomina, e nos locais onde o Sol alcança e esquenta a calçada - em meio aquele insano mar de edifícios - torna-se insuportável. Vez por outra é necessário se desviar de um homem Vitruviano que Da Vince largou na calçada. Triste obra-prima interativa nos nossos dias. Heróis empreendedores tentam vender de tudo, inclusive comida, nessas ruas. O policiamento se tornou pragmático: age pontualmente sobre pequenos eventos. O tráfico de drogas, que emoldura esse estado de coisas, segue frouxo e sem solução. Desviamos o olhar de alguém que procura comida no lixo, e encontramos outros brigando por um resto de cobertor esfarrapado. Esse micro (que se estende para macro) sistema não admite desavisados. Por isso, mamães, papais, vovós, filhinhos e até cachorrinhos a essa hora estão refugiados nos Shoppings Centers, essas grandes bolhas de conforto, bem estar e segurança que têm sua parte de culpa na debandada das famílias e na ocupação degradante dos centros urbanos. Os comerciantes mais antigos, assustados e desunidos, só encontram o poder público para pagar impostos. E a carruagem desce a ladeira, em chamas, desgovernada...
E alguns - na reflexão respaldada pelo título desse texto - imaginando como ajudar. ONGs buscam atender necessidades básicas de alimentação, higiene, saúde e abrigo. Mas há a inconveniência da perpetuação desse auxílio. Duas, três, e até quatro gerações nasceram nas ruas. Não possuem documentos, não têm noção de casa, lar, aconchego, dignidade. Têm outros valores, outras urgências. Pertencem a outro mundo, falam outra língua. Com eles não conseguimos estabelecer comunicação razoável, não dialogamos, não há como alcancá-los. Outra parcela desses desvalidos, à qual eu não arriscaria estabelecer percentual, está lá pela conveniência. Sim, apenas porque hoje é uma possibilidade morar nas ruas, tornou-se fácil experimentá-la. E aqui palpita um cidadão que abomina a arbitrariedade vivida na época da ditadura, assim como aqueles que por ela nutrem algum tipo mórbido de simpatia. Entretanto uma pergunta ulula na esquina da Ipiranga com a Avenida São João: se a prisão por "vadiagem", famosa no tempo dos milicos, fosse praticada nos dias atuais, existiriam tantas moradores de rua? A resposta que me ocorre tem qualquer coisa da imagem de A Criação De Adão, de Michelangelo, pintada na capela Cistina.