QUEIXUMES DO BRASIL

QUEIXUMES DO BRASIL

Segundo a História humana, eu nasci, para o mundo dito civilizado do velho continente europeu, há pouco mais de meio milênio, exatamente no dia 22 de abril de 1500, descoberto por navegadores portugueses que a mim chegaram em três caravelas trazidas pelos ventos.

Eu disse que ‘nasci para o mundo dito civilizado’ porque, na realidade, eu existo desde que minhas terras se cobriram de matas e alimentavam meus filhos, herdeiros dos povos primevos, nascidos das minhas entranhas fecundadas por Tupã.

Meus filhos primogênitos viviam felizes, alimentados pelos dons das minhas florestas e dos meus rios. De alma inocente e solidária, viviam e relacionavam-se segundo a natureza, sem complexo de culpa ou pecado contra Tupã, o deus supremo de suas crenças. Entre eles não havia pobres nem ricos. Nem conheciam miséria, porque minhas terras, ricas em frutos e caças, e meus rios dadivosos em peixes alimentavam a todos sem que precisassem rasgar meu solo para plantios.

É verdade que as muitas tribos promoviam guerras entre si, mas não com o intuito de escravizarem umas às outras, apenas para adestrarem-se nas armas e na valentia, pois acreditavam que Tupã premiava tanto a bravura quanto a nobreza nos atos.

No dia que chegaram os brancos malditos, começou minha desgraça. Os primeiros deles, traiçoeiros, conquistaram a confiança e a amizade dos inocentes filhos meus com mil bugigangas e promessas vazias, e depois mais, meus novos filhos, os descendentes dos invasores, com ânsia de dominação, passaram a perseguir e aniquilar tribos inteiras, como se irmãos não fossem, tanto pelas armas de fogo quanto pelas doenças sem conta e vícios, por eles trazidos de suas terras, que dominavam e enfraqueciam meus primogênitos guerreiros, tornando-os imbeles.

Houve exceções, é verdade. Com os malditos vieram muitos de almas generosas. Trajavam vestes pretas e pregavam a doutrina do amor ao próximo e do perdão, pensando suas feridas. Diferentes dos demais, viam meus filhos como seres humanos, filhos do verdadeiro Deus, antes desconhecido dos meus filhos, aos quais davam abrigo e proteção contra as crueldades dos invasores intrusos e ensinavam novos remédios não encontrados nas pajelanças nem nos dons da floresta.

Além de roubarem deles minhas terras, meus filhos brancos sem alma invadiam as tabas, incendiavam as choças e arrastavam meus pobres filhos nativos, forçando-os a trabalhar de graça nas suas roças. Que dura sevícia, forçar ao tra-balho escravo os livres filhos das selvas, os lídimos donos das terras! Muitos não se dobraram aos covardes tiranos e morre-ram sob a vergasta do feitor.

E o branco sem alma os chamou de vadios!

Outros tantos, porém, mais fracos de espírito, vencidos pelos vícios ou pelo rigor da chibata, submeteram-se passivos.

Uma vez que meus primogênitos não se dobravam ao trabalho servil, pois nobreza no sangue e nos gestos eu lhes dera, para satisfazer sua ganância, os brancos malditos trouxeram povos africanos inteiros para trabalharem escravos em suas lavouras.

Contrapondo a tantas desgraças, meus filhos brancos com ânsia de riqueza fácil, promoveram gananciosos gigan-tescas incursões sertões adentro. Destes feitos, eu até saí ganhando, pois alargaram minhas fronteiras para muito além de tratados em vigor lá nos reinos de além-mar.

Inicialmente e por muito tempo, minhas terras, com meus filhos e os invasores, eram governadas de longe por reis e suas cortes distantes, situadas além do grande mar. Mas fugindo de ameaças ao Reino, em 1808 o príncipe regente de Portugal, Dom João VI, deu com os costados aqui nas minhas praias com sua corte e a mãe louca, a rainha Dona Maria I. A partir de então, o príncipe fujão deixou de me considerar uma colônia sua, dando-me um título pomposo: Reino Unido a Portugal e Algarves. Eu pensei que isso fosse melhorar a situação dos meus filhos, mas qual! A exploração continuou a mesma e até com maior rigor. Um quinto de toda produção da lavoura e da mineração de ouro e pedras preciosas era destinado a Coroa.

Poucos anos depois, tendo Dom João VI e sua corte voltado ao Reino, ficou aqui seu filho de nome Pedro, que embora não sendo filho meu, por ter nascido no além-mar, aos 7 de setembro de 1822, proclamou minha independência, tornando-me uma nação livre, e ele se fez coroar meu primeiro imperador, com o nome de Dom Pedro I.

Poucos anos depois, forçado pela corte portuguesa, Dom Pedro I voltou para Portugal, sua pátria, deixando aqui, ainda criança, aos cuidados de José Bonifácio de Andrada e Silva, seu filho, o príncipe Dom Pedro de Alcântara, que depois de um período de Regências, com apenas catorze anos de idade, foi coroado meu segundo Imperador, intitulado Dom Pedro II. Homem culto, amante das ciências e das artes, Dom Pedro II reinou meu povo com sabedoria por mais de meio século.

Nessas alturas dos fatos, eu já tinha adotado por filhos os descendentes dos invasores que nasciam sobre minhas terras e embaixo deste céu. Houve miscigenação das três raças, chegaram imigrantes, vindos de muitas partes do mundo, e eu os recebi e abracei a todos com a largueza de minhas terras.

Mas intrusos na Corte, gananciosos próximos e ávidos do Poder, urdiram contra o Regime Imperial e o magnânimo Imperador e, aos 15 de novembro de 1889 proclamaram novo regime, o republicano, destronando Dom Pedro II, que dester-rou-se em Paris, onde morreu poucos anos depois. Dizem que repousava a cabeça sobre um saquinho de minha terra brasi-leira levada por ele para o exílio. Ah se todos os filhos meus me amassem e me engrandecessem como ele me amou e me engrandeceu perante as nações! Mas não. Salvo pouquíssimos, dos quais me lembro com ternura de pai, os que o sucederam no poder só pensaram e continuam agindo em benefício próprio, ignorando meu povo.

Como é triste ver meus filhos, de alguns anos para cá, se corromperem a tal ponto de tantos deles perderem comple-tamente a dignidade humana, por pensarem apenas no enriquecimento desonesto, desprezando valores éticos e morais, consumindo e traficando drogas que matam e destroem as famílias, por lutarem contra os bons costumes, por não pensa-rem mais em mim nem nos irmãos menos favorecidos!

Onde estão meus primogênitos, os erroneamente chamados de índios? Que fim levaram as milhares de tabas onde eles viviam felizes com suas crenças, seus pajés e seus deuses do bem e do mal? Os poucos que restam da horrível matança vivem acuados nas reservas, por demais escassas para que vivam da caça e a pesca, e por isso se corrompem também, subornados por brancos sem alma.

Meus filhos brancos, ditos civilizados, como vivem? Uns poucos privilegiados ou desonestos, vivem em luxuosas man-sões ou em confortáveis apartamentos, esbanjam riqueza em viagens e orgias, desfrutando do suor alheio enquanto milhões de outros filhos meus trabalham de sol a sol nos campos ou nas fábricas, vivendo miseravelmente nas favelas ou embaixo dos viadutos, mendigando à caridade alheia.

Qual o pai que não lamenta o desamor entre sua prole, que não chora por ver-se abandonado por seus filhos? Por não pensarem em mim, devastaram e continuam a destruir minhas florestas para extensos plantios, rasgam-me o subsolo em busca das inumeráveis riquezas que eu escondo, no seio das florestas, dos olhares cobiçosos de filhos alheios.

Minhas irmãs, as nações da Terra, me têm como celeiro do mundo devido à imensidão de minhas terras cultiváveis. E me chamam também de pulmão do mundo, pelas minhas florestas, o que não é verdade, porque há outras fontes de oxigênio, entre elas as algas marinhas, mas milhares de organizações estrangeiras – ditas não governamentais – insistem nesta afirmativa e instalam-se, clandestinamente ou protegidas por autoridades corruptas, nas imensidões de minhas terras desabitadas do Norte, alegando protegerem minhas florestas, mas com intenção escusa de se apossarem de minhas riquezas, roubando-as de meus filhos, pondo em risco até minha integridade territorial, desafiando e agredindo a soberania de meu povo.

Se o moço baiano, Antônio de Castro Alves, poeta de escol, vivesse hoje, não escreveria Vozes da África e sim Queixumes do Brasil.