Bando de narcisistas
Uma querida amiga psicanalista explicou-me o verdadeiro sentido da palavra “narcisista”: não é, como eu pensava, só aquele que se apaixona pela sua imagem no espelho; é, sim, aquele que julga que sua imagem é a única aceitável, e que rejeita e condena todas as demais. Rejeitando o diferente, empenha-se em doutriná-lo e em transformá-lo na própria imagem; ou, se for o caso, simplesmente exterminá-lo.
O narcisismo é, portanto, algo muito mais destrutivo que o egocentrismo. Este é só um filho do narcisismo, irmão do egoísmo, indiferença, frivolidade, alheamento, vaidade, soberba, inveja, ciúme, ambição, negacionismo, agressividade, hipocrisia, clientelismo, fisiologismo... É o narcisismo que empurra os seres humanos a serem dominadores e violentos. É ele que move os tiranos e as tiranias às conquistas e às guerras. É ele que seduz para os desatinos de poder, de exploração, de concentração e acúmulo de riquezas; moléstias que estão a sacrificar a humanidade.
Cada ser humano, e, como resultado, toda a humanidade, que é a soma de todos nós, trava dentro de si a luta mortal entre o narcisismo e seu oposto, a solidariedade. O narcisismo nega, afasta, separa. A solidariedade compreende, une, agrega.
O surto de narcisismo que a civilização atual está vivendo, manifesto nas guerras, no segregacionismo, nas teologias da prosperidade e da dominação, na disseminada crença em mentiras rasas, parece ter uma finalidade evolutiva. Ao longo dos milênios, surtos de narcisismo sucederam-se: impérios expandiram-se, e depois sucumbiram, suplantados por novos arranjos civilizacionais mais lúcidos, inclusivos e equilibrados.
Esse talvez seja o lado transformador dos surtos de narcisismo, como este que ora vivemos: a doença engendra a sua própria cura. O narcisismo, no seu tresloucado desvario, acaba por despertar para a lucidez, o discernimento. Aquilo que era uma patologia latente, oculta, revela-se. E, revelada, pode ser melhor diagnosticada, compreendida, tratada e curada.
No passado já houve exemplos marcantes da consequência transformadora do narcisismo: o obscurantismo da Idade Média engendrou a luminosidade do Renascimento; o totalitarismo do fascismo e do nazismo engendrou o culto à democracia. Mas parece fazer parte do desígnio da evolução que os surtos de narcisismo e de discernimento se sucedam indefinidamente. Até quando? O que ainda falta à humanidade para enfim reconhecermos os milagres da engenhosidade humana e da generosidade do planeta, que nos acolhe e supre nossas necessidades e sonhos?
Talvez o que falta seja que, na luta íntima que travamos entre o narcisismo e a solidariedade, nossa vontade coloque-se firmemente em favor desta última. Decerto assim agindo, algum dia ainda aprenderemos a respeitar o diferente. Compreenderemos, enfim, que a diferença enriquece e dá plenitude ao ser humano.
Urge que aprendamos essa lição! Antes de exterminarmos a espécie humana. A evolução está a nos testar, a verificar se somos viáveis e merecedores do milagre da vida. Ou se é necessário extinguir-nos para transferir a oportunidade para outra espécie mais qualificada. A natureza vem fazendo isso ao longo da história do planeta, desde muito antes de nós. A diferença é que hoje somos capazes de exterminarmo-nos, e até de destruir o planeta.