CRIANÇA EXTERIOR
CRIANÇA EXTERIOR
Como foi a sua infância? Há quanto tempo ela se foi? Estará ela ainda presente em você? Na alegria ou na birra? Hoje, já dela distanciado, o que você tem a dizer àquela criança ou o que esta diria a você? Hoje, adulto, tão sem tempo para brincar, para oferecer aquele brilho no olhar de quem se delicia a cada descoberta. Talvez tenhamos perdido o prazer pela simplicidade, artificializado o natural, banalizado o olhar.
Mas a gente precisa de gestos poéticos, de um colo acolhedor, de alguém que nos redima de sermos nós, que mesmo nos coloque de castigo, quando fizermos birra. É necessária muita coragem para confessar isso. Não que alguém deva (e possa) substituir o afeto de um pai, de uma mãe, mas transferimos esse papel a diversas outras personagens: desde o/a companheiro/a, passando por um amigo, o chefe e até há quem o faça com presidentes.
Porém, antes, penso que deveríamos aprender a aceitar que somos adultos, num processo de maturação constante. Sei que por vezes a vontade é deitar no chão e chorar, mas, quer saber? Ninguém está realmente tão preocupado com suas lágrimas, porque estão muito ocupados com as próprias, mesmo que não as explicitem. Elas se mascaram na raiva, na inveja, no comentário aleatório, que na verdade revela muito.
Nessa criança ferida há alguém que teve sua individualidade tratada com sarcasmo, quando tudo o que desejava era estima, ser levada em consideração, atentando-se para suas opiniões com naturalidade. Sem paciência, silenciaram-na. E hoje fazem isso com veemência, sobretudo com as mulheres. Mas nos esforçamos para sermos adultos gentis, apesar de.
Por viver mal a infância, temos adultos brincando: brincando de amar, brincando de trabalhar, brincando de médico, brincando com armas, brincando com carros, brincando de edificações – por vezes suntuosas e destruidoras da natureza –, brincando até com Deus.
Todavia, como disse o poeta Rainer Maria Rilke: “as crianças repousam no amor”. E acrescenta que a ilusão destas é acreditar que é possível pertencer a alguém. Nós carregamos essa ingenuidade até a vida adulta, por isso esperneamos, criamos cena quando alguém que julgávamos que nos amava decide ir embora. Tomamos isso como uma rejeição. Berramos “é meu/minha”, não queremos dividir sequer o tempo desta pessoa com outra. Ela nos traz a segurança, sobretudo numa era de tantas incertezas...
Para onde irmos senão aos braços de quem amamos? Para onde ir se fosse possível retornarmos à infância, esse espaço imaginário, idealizado a partir de um agora, de um ontem tão utópico quanto o amanhã? Eu gostaria de ir para o sítio do meu avô, algum ambiente rural, sem internet e sem as tantas parafernálias do mundo adulto, que me cansa com tantas crianças externando o pior delas.
O desafio é conciliar nossa criança interior com a exterior. Como diz a canção de Fernando Brant e Milton Nascimento: “Há um menino, há um moleque/Morando sempre no meu coração/ Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão [...]”. Que o menino conserve com esperança o coração do adulto e que esse balanço se torne um grande abraço, em braços que sejam capazes de acolher o outro quando o mundo parecer mais apertado do que o menor útero.
Leo Barbosa é professor, poeta, escritor e revisor de textos
(Texto publicado no jornal A União em 09/02/2024)