Facetas da identidade queer das drag queens

Introdução

Ao se investigar facetas da identidade queer das drag queens, a ótica psicanalítica é chamada a contribuir. Parte-se da definição de drag queen e dos aspectos históricos de sua inserção social. A seguir, sua identidade, sua sexualidade e sua força de transformação social são pensadas sob o prisma da psicanálise, psicologia existencial, ciência da comunicação, filosofia, antropologia, dentre outras. Esse material teórico advém de dissertações, teses, livros e artigos sobre o tema. Juntam-se a elas, as hipóteses da autora sobre o desejo, os traumas e o sistema das representações. Posteriormente, o método clínico psicanalítico é aplicado às situações extraclínicas - trechos de entrevistas - para ter acesso às facetas do eu das drag queens. Com isso, o arcabouço teórico dialoga com as fontes empíricas/trechos de entrevistas para investigar as questões da identidade das drag queens.

Os artistas que fazem uso de feminilidade estereotipada e exacerbada em apresentações são drag queens e mulheres caracterizadas de forma caricata como homens, para fins artísticos e de entretenimento, são drag kings (Santanna, 2021).

Aspectos históricos

As primeiras montagens de homens como mulheres surgiram na Grécia Antiga, onde apenas os homens poderiam vestir as máscaras com personas do gênero masculino e do feminino, bem como usar roupas femininas para representar as personagens. Clitemnestra, Medéia, Electra, Ifigênia e Antígona foram vividas por homens na antiga Grécia. A Ópera de Pequim na era Ming no século XVIII estabeleceu que os personagens femininos seriam representados por homens. A partir da exclusão e do preconceito contra as mulheres, surgiram os transformistas em peças teatrais. Essa personificação do feminino por homens foi difundida a partir do século XIV no Japão e se espalhou por todo o Oriente. Na Índia, o Kathakali no século XVII, valia-se de homens para representar papéis femininos, como as deusas nas epopeias sagradas do hinduísmo Ramayana e Mahabaratha. No Japão, o Nô e o Kyogen foram, desde o século XIV, performances específicas do ator masculino. O Kabuki, no Japão do século XVII, demonstra o rigor do artista transformista (Amanajás, 2014). O primeiro indivíduo designado como drag queen foi William Dorsey Swann, um ex-escravo, que usou o termo ‘queen of drag’ como sua identidade. Negro e revolucionário, foi preso diversas vezes, por se montar com intuito artístico. Após seguidas perseguições, passou a lutar pelo direito de se montar, sendo o primeiro ativista dos direitos das drags no mundo (Santanna, 2021).

Na sociedade grega, as mulheres eram destituídas de cidadania e impedidas de frequentar o espaço público sem seu tutor ou escravo. Além disso, na Idade Média, em países europeus, a Igreja limitou o conteúdo e os atores nas representações teatrais. À medida que o cristianismo ganhava força, as histórias pagãs foram substituídas por contos bíblicos. Era aceito que homens representassem personagens bíblicas femininas, que não detinham notoriedade nas peças. À época, era comum que adolescentes interpretassem personagens femininas, visto que seu corpo e sua voz ainda ocultavam características fisiológicas masculinas, favorecendo a verossimilhança entre ator e representação socialmente aceita da figura feminina (Amanajás, 2014).

Nos séculos XVIII e XIX, as produções artísticas buscaram o realismo das representações, de maneira que as mulheres puderam reivindicar papéis femininos nos espetáculos, até então voltados para a naturalização da passividade e delicadeza da mulher ideal na sociedade burguesa. Paralelamente, a drag deixa de ser uma forma feminina do ator e passa a ascender devido a seu aspecto cômico, até meados do século XX. Assim, a drag passa a transitar nos palcos inserida nas farsas teatrais, na comédia satírica e na ópera, com a emergência dos castrati. Por um lado, a mulher mimetizada por homens em tom satírico atrai o público ao denunciar a realidade e se populariza na Europa. Por outro lado, fora da cena artística esse tipo de performance detinha uma conotação pejorativa, à medida que o homossexual emergia na sociedade europeia. No século XVIII em Londres, nas Molly Houses, as drag queens se vestiam e se comportavam como mulheres, nos encontros e relações sexuais entre homens. Eram lugares marginalizados, porque a sodomia era considerada um delito e acarretava punições severas. No século XIX, casas de shows da época popularizaram artistas drags, com habilidades cômicas e caricatas. Nessa atuação satírica/pantomima, a mímica era utilizada para debochar das personagens do patrão, da virgem, da madame etc. As drags eram damas pantomímicas nos 50 primeiros anos do século XX, uma forma artística respeitada e aceita - marcando o início da performance drag da atualidade (Amanajás, 2014).

A teoria queer

A teoria queer tem sido discutida pelo movimento gay norte-americano para ampliar a ótica acerca da identidade sexual, superando os paradigmas binários heterossexual - homossexual e masculino - feminino. A teoria queer rompe o pensamento normativo e reducionista sobre a sexualidade humana, discute a formação da identidade sexual das drag queens e propõe novas políticas identitárias, que superem as dicotomias de gênero. A identidade queer constitui um fenômeno mutável, performático e dialético. A drag vivencia a alternância de identidades, apropriando-se de características dos dois gêneros, em sua identidade queer (Butler, 2003; Louro, 2001).

Segundo Louro (2001), a teoria queer surge da crise da identidade homossexual. Queer significa estranho, raro ou excêntrico. Foi ressignificado de forma positiva, para se contrapor à normalização da heteronormatividade. A teoria queer caracteriza uma revolução conceitual, pois traz a ideia de uma identidade não-fixa e não-dicotômica entre masculino e feminino. A identidade sexual parece ser fixa, mas ela é questionável. A afirmação da identidade implica a demarcação e a negação do seu oposto, constituído como diferença. A identidade negada é constitutiva do sujeito, fornecendo-lhe o limite, mas assombrando-o com instabilidade. O sexo se entrelaça à normatividade do ideal regulatório da ciência ocidental, que produziu corpos sexuados e governados. As drags subvertem a ideia de gênero quando demonstram a não naturalização dos gêneros e da identidade sexual. As drags se contrapõem à ideia da identidade como algo fixo, na clave de Ciampa (1984), que compreende a identidade como metamorfose.

De acordo com Butler (2003), as diferenças sexuais são percebidas pelas diferenças materiais, também marcadas pelas diferenças discursivas. Apesar da reiteração da norma, que tenta controlar os corpos por meio da sexualidade, o controle nunca é completamente exercido. O sujeito vive sua sexualidade entre a necessidade social de uma normatização e uma contestação da necessidade sexual, fazendo com que as fronteiras da sexualidade sejam testadas por ele. A teoria queer contempla os sujeitos na fronteira entre um e outro gênero, como as drag queens. A identidade da personagem se diferencia do sujeito, mas ela se entremostra na fronteira, em uma sobreposição frequente. A identidade de gênero é um modo de se relacionar e estar no mundo, a partir da relação performática com aspectos espaço-temporais, subjetividades e identidades. A identidade de gênero é significada pela sociedade e pela cultura, descolada do sexo do indivíduo. Para Lago (1999), as identidades de gênero são socialmente atribuídas e marcadas por valores desiguais, padronizadas e estereotipadas. A incorporação dos papéis sexuais e a configuração da identidade de gênero passam pela socialização.

Barreto (2021) retoma que a teoria queer critica a cisheteronormatividade e aponta as performatividades não hegemônicas, que tensionam tais normas. As performances trans englobam as produções corporais e/ou artísticas, que desafiam a normatividade cisgênero e heterossexual, mediante as apresentações protagonizadas por drag queens, drag kings, transformistas, travestis e transgêneros. As performances trans favorecem uma crítica potente e transformadora da mimese do ideal feminino cisheteronormativo. Quanto a isso, Preciado (2011) enuncia que pessoas gênero-dissidentes forçam os limites dos enquadramentos cisheteronormativos de gênero e escancaram o caráter social, cultural e político dos diversos usos possíveis do corpo. Ao fazê-lo, mostram a limitação do enfoque binário, que desconsidera outras existências ao naturalizar a lógica homem-masculino-pênis e mulher-feminina-vagina – considerada universal - e criticam os modos de viver legitimados como normais.

As drags tem uma postura mais audaz e espontânea que a do sujeito, pois como personagens satíricas brincam com a sexualidade do público, satirizam sua sexualidade e suas manifestações. Existe um limite que separa a identidade do sujeito e da drags, pois no cotidiano não costumam expressar características da personagem. Contudo, por vezes, a dimensão identitária não distingue a personagem e o sujeito. O limite entre essas identidades não é estático, fixo ou cristalizado, mas uma fronteira flutuante entre as características de ambos. No limite entre as identidades, a separação se dá pela montagem - relacionada a encarnar e incorporar. Há certa autonomia, permeabilidade e hibridismo na identidade queer, devido a mistura de aspectos femininos e masculinos (Silva, 2000).

Para Mazzei e Ferrari (2021), as fronteiras entre os gêneros tornam-se difusas na construção da drag. Essas fronteiras são abertas para o livre trânsito entre masculino e feminino, frente à fluidez de gênero. Contrapõe-se à naturalização da norma da filiação perene a um gênero, cerne do discurso excludente, dual e dicotômico sobre a sexualidade.

O universo drag

Na perspectiva de Chidiac, (2004), a drag possui características físicas e psicológicas, posturas e atitudes próprias da personagem, que a distinguem do sujeito. Entretanto, existem situações em que personagem e sujeito se confundem. O sujeito manifesta esse jogo de identidades de ambos os gêneros, configurando uma identidade queer. Ser drag associa-se ao trabalho artístico mediante a elaboração de um personagem, que se expressa através de arte performática: a dança, a dublagem e a encenação de pequenas peças. Sua inserção na mídia propiciou sair de espaços exclusivamente GLBTT - gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros - para fazer suas performances nos diversos ambientes de socialização. No que se refere à expressão e comunicação, as drags mantêm um vocabulário próprio, com recursos de linguagem com viés semântico. O domínio da linguagem tem relação com sua participação social, defendendo pontos de vista e partilhando sua visão de mundo.

Quando se trata de delimitar as fronteiras que diferenciam travestis, drag queens e transexuais, percebe-se a dificuldade de agrupá-los a partir de seus comportamentos. As drag queens e os travestis são classificados como cross-dressers, transformistas ou homens que se vestem de mulher. No cotidiano, as drags se vestem como homens e exercem profissões diversas. Travestis utilizam próteses de silicone e hormônios em seus corpos femininos, permanecendo travestidas no cotidiano, mas sem fazê-lo de maneira exagerada e caricata (Silva & Florentino, 1996). Contra os travestis há forte preconceito e discriminação, não sendo aceitos nem mesmo em lugares frequentados por gays. Sua imagem é associada à violência, à prostituição e a DSTs. Eles são mais estigmatizados e discriminados do que homossexuais, lésbicas e drags (Kulick, 1998). Silva e Florentino (1996) relatam que travestis, diante de um problema contra sua integridade física ou moral, sacam os homens dentro de si, para enfrentá-lo. Transexuais não se identificam com seus corpos e sentem ter uma natureza oposta a seu sexo.

Trevisan (2000) considera a década de 90 como o momento de efetiva emergência das drag queens. Sua inserção no âmbito político foi facilitada por causa dos componentes lúdicos e satíricos em suas performances nas Paradas do Orgulho Gay, em São Paulo e Rio de Janeiro. Vencato (2000) pontua que as performances as drag queens tem relação com as artes cênicas e interpretativas. Elas se situam no universo heterossexual e no homossexual, pois se inserem em diversos espaços sociais e culturais.

Para Scott (1990), as construções de gênero são formas hierárquicas de exercício de poder, estabelecidas através das relações sociais e sexuais. As drags ressaltam suas características caricatas, que lhes permite utilizar diversos acessórios na construção de suas personagens feminino-masculinas. A montagem se refere ao ato de construir a personagem com adereços, nome próprio e características femininas. As drags unem características físicas e psicológicas dos dois gêneros, sendo e estando masculinos e femininos, numa composição que questiona a rigidez do conceito de identidade. Como atores performáticos, têm o potencial de subverter e transformar o status quo.

A drag queen detém personalidade própria e pode ser considerada uma identidade multifacetada de seu criador. A comunidade drag queen é bem estruturada, possuidora de representações, significados e identidades, que dialogam com as identidades dos performers. A expressão artística da drag vai além de imitar uma mulher, ao estabelecer um personagem com nome, sobrenome e identidade própria - extensão do sujeito, complementar ou oposta a ele. Como o sujeito pós moderno - fragmentado e multifacetado - possui identidades que se complementam ou se contradizem, o performer e seu alterego drag talvez possa ter identidades diferentes no mesmo corpo (Lopes, 2021).

Drags, sexualidade e escolha de parceiros

As drags são sedutoras, expansivas e envolventes, provocando e estimulando a libido e as fantasias do público, por meio das performances associadas à sexualidade. Sua grande característica é utilizar-se somente de vestes e indumentárias na constituição de seus corpos femininos. A apropriação que as drags fazem das características femininas é explicitada em suas montagens e indumentárias, incluindo a maquiagem, as espumas que contornam os seios e os quadris, perucas e outros artifícios na composição de seus corpos femininos. A feminilidade é associada à delicadeza, beleza e sensualidade. Com os parceiros, elas experenciam e expressam a feminilidade de suas personagens. A identidade das personagens é vivificada quando elas não estão montadas, na intimidade junto a família e amigos em espaços privados (Chidiac, 2004).

Considerando que as expectativas em relação aos gêneros feminino e masculino se baseiam nos estereótipos vinculados ao homem e à mulher, a drag brinca e satiriza essas diferenças e esses estereótipos. Quanto à sua sexualidade, elas se consideram homossexuais. A personificação da drag não interfere nos seus relacionamentos sexuais e seus parceiros não costumam se incomodar com o fato de elas serem drags. Porém, seus relacionamentos, principalmente os compromissos sérios, iniciam quando elas são percebidas como sujeitos - não montados. As drags exemplificam a complexidade da sexualidade humana, pois preferem homens heterossexuais, que gostam de mulheres. Evidenciam a desconstrução da normatividade heterossexual- homossexual. As drags assim o fazem por uma contestação da normatividade sexual ou por um desejo que ultrapassa as fronteiras da sexualidade. As drags desejam viver e ser aceitas como tendo uma natureza oposta a de seu sexo, superando as características físicas de homens e vivificando suas identificações com o gênero feminino de forma queer, na construção de seus corpos, desejos e paixões (Chidiac, 2004).

As drags sob a circunscrição da psicologia e da mitologia

Para compreender o fenômeno drag queen com base na fenomenologia existencial, cabe percebê-lo em seu mundo de dentro para fora. Essa forma do sujeito ser-no-mundo transita no universo masculino e feminino, construindo um mundo intergênero, ao ser a mistura dos dois. Esse excesso entre ambos lhe permite ser várias coisas ou pessoas. A drag é o que a sociedade diz que não pode ser na vida real: a ilusão de gênero, a abertura para um mundo particular, em constante relação com os demais. Ser drag está atrelado ao mundo próprio, sendo que cada sujeito possui uma experiência única com sua montagem e seu projeto de vida. Essa nova maneira de ser-no-mundo demonstra coragem, luta pela liberdade, autenticidade e vontade de mudar sempre, se construir e reconstruir. Nessa maneira de existir, assume situações que garantam sentido à sua existência, como o engajamento em atos políticos e humanitários. Assume a responsabilidade de ser diferente, diante de uma sociedade com dificuldade de lidar com o não convencional. Ela pode enfrentar dificuldades de aceitação no contexto familiar e social. Antes consideradas necessárias para o entretenimento, hoje as drags escancaram que podem ser aquilo que querem ser. Em contrapartida, angustiam-se pela negação da liberdade de ser e minimizam as possibilidades de ser-no-mundo, limitando sua própria existência. Há uma multiplicidade de significados que cada performer traz consigo na relação sujeito e personagem (Pereira, 2023).

Oliveira Filho et al. defendem que o discurso das drags pode dialogar com a Jornada do herói de Campbell. Enquanto Campbell examina as etapas que levam o herói do mundo comum para o extraordinário, a jornada da drag do cotidiano para o mundo drag engloba a construção estética de sua persona drag. Essas etapas da jornada do herói se encontram nas narrativas das drags, ao contar sua dinâmica de consumo para o nascimento de suas personas. Os desafios do percurso trazem habilidades e conhecimentos para além do mundo drag, produzindo uma heroína da subversão de gênero no cotidiano. Em uma sociedade em que a cultura e a arte podem ser desvalorizadas, ser artista é um ato político heroico.

A drag utiliza da moda como instrumento de transformação e forma de expressão do eu em negociação consigo e com a cultura, como armadura para disfarçar sua verdadeira identidade, enquanto cria uma identidade de moda de gênero.

A heroína drag busca o autoconhecimento e autoaprimoramento, para conquistar a liberdade de ser para si e para o outro.

As drags e suas outras questões

Thürler e Azevedo (2019) aportam que a problemática em torno do termo diva, na comunidade LGBTQI+, se dá pelo vínculo com as glamurosas mulheres do cinema e da música, referência de beleza e comportamento como: Marilyn Monroe, Madonna, Lady Gaga. Elas servem de influência para a transformação de drag queens e transformistas, que tem dificuldade na reprodução de tais estéticas, sobretudo pelo alto preço. Drag queens/kings e transformistas são artistas que performam gênero, enquanto espetáculo, existência temporária de um corpo sobre outro, um corpo utópico temporal, que existe durante o tempo da performance. A reprodução do visual heteronormativo parece ser premissa para o devir drag.

O consumo é bastante relevante para a montagem, quando a drag almeja vestidos, joias e perfumes de grife, para ser considerada diva.

Gadelha (2009) informa que muitas drag queens, para manter esses padrões de montagem, chegam a dar seu salário mensal completo na compra de uma peça ou a compram com cartões de crédito, nunca chegando a pagar os produtos adquiridos. Os voos de beleza são oportunidades das transsexuais brasileiras de viajar para a Europa e voltar para o Brasil com nova aparência, a partir de procedimentos estéticos e da aquisição de bens de luxo. O voo da beleza significa que na Europa os cachês como profissionais do sexo são significativamente mais altos do que o programa no Brasil, que lhes permite ter mais capital para investir na aparência. Nesse sentido, ser ou parecer uma diva está muito mais relacionado a ter cara de rica do que a ter dinheiro, de fato.

Thürler e Azevedo (2019) acrescentam que as drags são classificadas em categorias distintas, segundo suas estéticas e estilos. No site queerty.com, uma lista abarca onze estilos de drags. As drags amapô são representadas por mulheres cis; as transdrags iniciaram a transição de gênero com medidas cirúrgicas ou hormonais para promover a aparência feminina; as rainhas andróginas combinam características masculinas e femininas nas montagens; as beauty queens se orgulham de parecer mulheres cis a partir de maquiagens polidas; as rainhas de concurso são drag queens extremamente polidas, que vivem em concursos de beleza; as club kids tem como estética e discurso, o escândalo e o sexo, visando satirizar o ato de se montar; as rainhas góticas se inspiram em filmes de terror para suas montagens; as tranimals desconstroem a moda e a maquiagem, utilizando elementos de surrealismo, perucas e roupas desleixadas, incorporando referências punk e rock; as versáteis queens fluidas transitam por vários estilos; as ativistas lutam por causas humanitárias e as drags camp empregam elementos da palhaçaria: o exagero, a sátira e o humor. As drags queers performam a drag além da caricatura do feminino, com críticas sobre a norma, a normalidade e a normalização da própria cena, como estética colonial junto com marcas sociais da abjeção, da marginalidade e da invisibilidade. A drag queesr utilizam do feio, do anormal e do monstruoso como positivação de subjetividades marginalizadas e desfrutam da política queer como modo de autoafirmação. Ela adota a etiqueta da perversidade para destacar a norma do normal, hetero ou homossexual. Queer não é se rebelar contra a condição marginal, mas desfrutá-la.

Ademais, a estética e o gosto podem ser relativos, de acordo com a sociedade, a época ou o contexto cultural, embora, historicamente, as classes dominantes tenham ditado as regras do bom gosto, criando padrões de beleza e costumes que deviam ser seguidos por todos. Desse modo, ridicularizavam os gostos das classes mais baixas. Nessa esfera, surge o kitsch, a arte do mau gosto caracterizada pela pretensão de encarnar valores culturais e estéticos da alta classe, sem atingir sua qualidade, por parte da classe média, que deseja ascensão social. O kitsch pode ser utilizado como estética provocativa, para questionar os valores da arte e da beleza. O camp é um modo marginal de relação com a estética, a partir da junção do erudito com a cultura de massa. O camp se caracteriza pela vulgaridade proposital, mesmo quando se pretende refinado. Enquanto o kitsch acha belo o que se entende como feio e de mau gosto, o camp se interessa pelo mau gosto do objeto. O camp emerge como o belo do feio, o bom gosto do mau gosto (Gadelha, 2009).

Esses conceitos ecoam nos modos de se fazer drag, que transforma seus corpos em outros corpos - não segmentados por códigos sociais - que permitem desobedecer e superar a matriz de inteligibilidade, forma como se organizam as identidades de gênero e sexuais, de modo que alguns corpos importam e outros são excluídos. A drag queen é exemplo potente e alegórico, que demonstra o caráter construído e fictício do gênero, a não-existência de um original autêntico. Desse modo, as drags experimentam, através do fascínio ou do desconcerto, modos alternativos, dissidentes e contraculturais para abrir pontos de fuga e implodir paradigmas normativos (Butler, 2010).

Vencato (2002) afirma que, independentemente das práticas sexuais das drags, a prática do crossdressing já lhes garante certo grau de marginalidade e de estigma. Velho (1999b) aponta que o fato do indivíduo ser judeu, católico, cigano, índio, negro, umbandista, japonês, entre outros, o coloca em uma categoria social, que pode ser valorizada ou discriminada e estigmatizada. Newton (1979) afirma que drag queens carregam uma carga muito grande de estigma, por representarem a homossexualidade masculina e comprometerem o ideal hegemônico de masculinidade hetero. Em relação à sua sexualidade, ‘bichas’ e ‘homens’ são homens que têm relações erótico-afetivas com outros homens, mas essas categorias tem mais relação com sua corporalidade, com suas performances, suas roupas, falas e movimentos do que com o que fazem na cama. Assim, bicha tem uma postura efeminada no cotidiano, enquanto homem tem um modo de ser/estar no mundo bastante semelhante ao estereótipo do homem heterossexual. Uma drag pode relatar que sua identidade se acha num campo de tensão entre ser homem, ser mulher, ser travesti, ser drag queen e, por vezes, não ser nenhuma dessas personas.

Orquestrado pela oposição de gênero e fundado na lógica de atividade e passividade, somente o passivo entra numa classificação estigmatizante. Se no século XIX o sexo era inserido no discurso médico-psiquiátrico, seu desdobramento recente é o coming out/sair do armário: assumir sua orientação homoerótica publicamente. A construção de sua persona envolve os limites entre seu eu-desmontado e seu eu-montado. A drag queen é um ser em transformação, um vir a ser, que reatualiza esse devir, de forma contínua. Essa inscrição do desejo no corpo deve ser sempre reatualizada e reafirmada. Não fosse o desejo de ser mais, ser melhor, aparecer, brincar, ser profissional, ser única, não haveria drags (Vencato, 2002).

Ferreira (2020) relembra que a vida adulta se torna o palco no qual é possível ocupar espaços de poder, para colocar em prática desejos e curiosidades, que remontam à infância. São ressignificados momentos e renegociadas posições, sentidos, visões de mundo. As normas de gênero são contestadas desde cedo, cada um à sua maneira. Contudo, apenas na vida adulta as pessoas tem autonomia para colocar em prática seus desejos e curiosidades. A adultez potencializa a descoberta de si e da drag queen e nela se experimentam transições, pontos de virada, renegociações com circunscritores, assim como a descoberta de novos contextos e novas possibilidades de ser. A drag queen não se apresenta somente como uma atividade que toma forma na vida adulta, mas também se apresenta como uma possibilidade de desenvolvimento. Além disso, a midia favorece mudanças na mentalidade do público. Nesse sentido, o reality show Ru Paul’s Drag Race se tornou circunscritor no processo de construção da drag, visto que orienta práticas, traça perfis, possibilidades e limites para drags. Além de sua influência no aspecto micro, evidente nas trajetórias individuais, é elemento da matriz sócio-histórica, tendo em vista sua repercussão social e internacional/macro. Pois, a drag queen foi trazida para a cultura mainstream, potencializando visibilidade e mudanças na cena drag internacional.

Bezerral e Osterne (2017) retomam Mauss (2003) acerca do corpo ser adestrado através da educação para se portar de certas formas. Estas variam de acordo com o espaço e o tempo, mas compõem quadros de eficácia e tradição, perpetuados e modificados por povos, nações e culturas. Butler (2003) considera que o corpo, o sexo e o gênero são matrizes criadas a partir de forças discursivas, que se intitulam portadoras da verdade. Por outro lado, o corpo drag evidencia a falência de discursos compostos por verdades falidas. Nesse cenário, a drag queen constitui uma potência social de de smascaramento dessas pretensas verdades, com polos de existência móveis, fluídos e não-rígidos. A potência política subversiva ou reiterativa da drag abarca um território de identificação e desidentificação, que lhe permite transitar entre a subversão e a reiteração da norma.

Rolnik (2013) problematiza certos efeitos da globalização e das novas tecnologias na subjetivação. Seus efeitos englobam a pulverização das identidades locais estáveis, junto com as identidades globalizadas flexíveis, formadas e desfeitas ao sabor do mercado. Dentre as formas de resistência, tem-se a apologia da pulverização - fascínio niilista pelo caos - e a defesa de identidades locais fixas/minorias militantes. Estas resistências colocam as subjetividades em estado de falta permanente e promovem a toxicomania de identidade, produzida pelo variado mercado de drogas - farmacológica, tecnológica e midiática. Romper tal regime identitário é condição essencial para se afirmar o imenso potencial de criação na existência individual e coletiva, na atualidade.

Depoimentos

Essa parte da pesquisa consta de duas sub-etapas. A primeira envolve trechos de entrevistas de diferentes drags, ao passo que a segunda enfoca a drag Vaginal Creme Davis. Seus dados autobiográficos e trechos de suas entrevistas são disponibilizados.

As aspas retratam as facetas da identidade queer das drags. O itálico destaca as facetas de sua identidade/suas representações mentais e, ainda, palavras estrangeiras. Os colchetes omitem os trechos de seu discurso desnecessários para essa reflexão.

As entrevistas a seguir derivam da pesquisa de Ferreira (2020) com quatro homens cisgêneros homossexuais, criados de forma conservadora. Em suas histórias, o sofrimento se deve à compreensão social de gênero e a dor física envolvida na montagem. Contudo, eles teceram novos sentidos para essa prática: arte, paixão, prazer, expressão, realização, reconhecimento, criação, descoberta, transformação, política, luta e liberdade.

Paulo, homem cisgênero, homossexual, 28 anos. Sua drag nasceu há 7 anos. Sentiu curiosidade por objetos ditos femininos desde a infância, quando vestia os vestidos e os sapatos altos da mãe de forma escondida, pois temia a reação dos pais, caso o fizesse claramente. Seus pais negaram/excluíram elementos do gênero oposto, impondo o que seria certo para ele. Ele começou a se montar para trabalhar em campanhas de saúde, mas isso enrijeceu sua relação com a personagem e ele deixou de sentir prazer. Então, decidiu resgatar o lugar que ele gostaria que a drag ocupasse, retomando seu desejo de infância.

Paulo: ‘Já teve épocas de eles procurarem coisas e jogarem fora, juntarem, assim, juntava roupa, maquiagem, tudo, jogavam fora’. ‘No halloween [do curso de inglês], eu vou fazer uma performance, eu disse. Fui e fiz. Mas naquele tempo, tinha muita vergonha, fiquei tão constrangido naquele dia. Quando terminou, eu saí correndo para o banheiro. Aquilo ali foi um grande conflito, de interesses, de valores que me foram passados e o que eu achava certo e o que tava errado’. ‘Foi tudo tão rápido, que eu não tive tempo de saber o que era drag queen. Foi aí que eu descobri que a drag queen que eu tinha, [] tinha se transformado num objeto do serviço público. Atualmente, a drag queen, Sheyla Áquila, pra mim, ela é algo meu. Onde eu posso desopilar, extravasar meus sentimentos’.

Marcos, homem cisgênero, homossexual, 31 anos, se monta há 6 anos. Ele se reconheceu LGBT desde cedo. Mais velho, declarou ser homossexual para a família. Em contato com a série RuPaul's Drag Race, ele questionou os padrões de gênero e se monta como Miss Tiffany. Para ele, a figura da drag queen passa de incompreensível à potência política. Seu questionamento do status quo o levou a buscar outras possibilidades de ser.

Marcos: ‘Assistindo RuPaul’s Drag Race, eu comecei a entender o entretenimento por trás da drag, até que entrei em grupos de discussão do programa e fui vendo outras vivências, de outras pessoas que se montavam, aí eu fiz: hmm, olha que legal, a desconstrução, lutar contra esse padrão, a gente não precisa ser normativo pra se encaixar em algum lugar, sabe? E eu fiz, quer saber? eu vou me montar. Eu tinha muito medo daquelas figuras, sabe? Das drags, eu achava isso muito estranho []. Não via propósito naquilo, só achava bem estranho’. ‘Eu acho que foi muito produtivo pra mim [me montar], me fez questionar muita coisa, e ter muito mais empatia com outras pessoas, com outras causas, com outras minorias, porque você sendo alvo, você acaba percebendo que outras pessoas e outras minorias também são alvos. E isso foi o saldo positivo, ter conhecido pessoas que se aproximaram muito, que são praticamente a minha segunda família, sabe? Meus melhores amigos hoje em dia são pessoas que eu conheci por conta da minha drag’.

Vitor, homem cisgênero, homossexual, 20 anos, se monta há 4 anos. Sentiu curiosidade por objetos ditos femininos desde cedo, foi repreendido por usar os shorts da irmã e proibido de brincar com bambolê quando criança. Na adolescência, desejou interpretar uma mulher, Julieta, no teatro, mas foi impedido pela professora []. Na universidade, ele se questionou sobre isso e ao assistir RuPaul’s Drag Race, ele se montou como Julieta.

Vitor: ‘Se eu não posso fazer a Julieta lá no teatro, na escola, na aula de interpretação, eu posso [] fazer alguma coisa com essa Julieta, ela pode fazer parte de mim de alguma forma e tentar expor isso [] numa performance’. [Entrar na comunidade] ‘foi uma experiência traumática. [] a gente fala muito de preconceito, intolerância e existe uma reprodução disso na própria comunidade LGBT. Mas eu também encontrei pessoas, que eu tenho um sentimento, um carinho muito grande por elas. Que surgiu disso, né, da drag.’

Daniel, homem cisgênero, homossexual, 22 anos. se monta há um ano e oito meses como a Imperatriz Kawaii. Ele se identificou desde cedo com referências femininas.

Daniel: ‘no início do ensino médio, [] eu meio que sabia que era gay, mas eu negava pra mim mesmo, [], eu cresci na igreja, [] eu negava isso. Né, sempre negando, sempre negando, sempre negando e a Gaga me deu um estalo [] eu posso ser eu mesmo. Aí foi a maior [] briga na família, [] na época abafei o caso e fui pra um retiro, disse que eu me converti [] que eu era uma pessoa normal, né?’ Quando passei no vestibular em teatro, o pessoal brincava muito dizendo: tu raspaste a cabeça pra usar peruca quando for trabalhar com Cinderela 2? Eu xingava, dizia que nunca ia fazer uma palhaçada dessas, que isso era um desperdício, isso só fazia aumentar o preconceito na profissão [de ator]. ‘Minha estética principal é internacional, eu uso um body, eu uso um espartilho, e ainda boto um espartilho por cima. Então é um aperto muito grande, tá entendendo? É um aperto muito grande, é uma dor muito grande’. Ele ainda esconde o pênis e não pode ir ao banheiro. ‘É esse misto de sensações, assim, é realmente a dor de ser o que é, tá entendendo? É uma dor muito grande, mas quando eu chego num evento, que as pessoas falam comigo []. É uma sensação de bater nas próprias costas e dizer Parabéns. É a dor física e é a alegria de você saber que seu trabalho tá alcançando as pessoas e tendo um impacto positivo nelas. Participar de uma disciplina sobre teatro asiático foi um divisor de águas []. Eu criei uma barreira em mim desses anos e anos e anos de heteronormatividade forçada. Eu dizia não, eu nunca vou me submeter a isso, mas quando estudei teatro [] dei de cara com o Female Impersonator e me vi apaixonado por essa arte’.

Purnell (2020) escreve que no reino do punk e da arte performática, Vaginal Creme Davis é a mãe todo-poderosa. Ela começou sua carreira como vocalista da banda art-punk Afro Sisters - inspirada por ativistas radicais negros - e se apresentou em outras bandas icônicas. Ela tem sido prolífica, tendo criado zines, filmes, esculturas, pinturas, composições musicais e trabalhos escritos - que distorcem e deleitam-se com a alteridade. ‘Isolar-me não é uma grande dificuldade. No fundo, eu sou uma pessoa solitária, que se obriga a ser sociável e extrovertida’. ‘Nunca estou satisfeita com nada que faço. Tudo é um trabalho em andamento ou algo que estou continuamente trabalhando’.

Donnelly (2012) relata: ‘Eu tinha um apartamento []. Na época, eu achei tão incomum eu nunca ter tido namorado nem nada e pensei: ‘Eu sei! Usarei meu apartamento como galeria e farei exposições a cada seis semanas. Vou conhecer um garoto lindo, que vai ser meu namorado. Meus planos sempre saem pela culatra. Não consegui namorado por ter a galeria. []. É assim que sempre acontece comigo. Eu sou a Dolly Levi! [Dolly Levi é uma viúva casamenteira, intrometida e amante da vida. Ela conhece um meio milionário e tenta fazer com que ele se apaixone por ela, mas é malsucedida].

‘Cresci tão pobre, que só na faculdade fui apresentada aos imaculados filhos da riqueza. Eu costumava ter tanto ciúme das pessoas daquele mundo. As crianças dos escalões superiores [] se tornaram as pessoas com quem eu estudava ou que conheci na cena punk. Muitos deles eram filhos de estrelas de cinema e se sentiam muito alienados dos pais. Percebi que não é tudo o que dizem, ter vindo da riqueza e do privilégio’. ‘Sou convidada por faculdades e escolas de arte, para ensinar e fazer seminários, adoro meus alunos, e sou muito generosa com eles, porque nunca terei meus próprios filhos - não neste útero! Então, meus alunos se tornam meus filhos substitutos’. Dunham (2015) agrega que sua nova exposição inclui dezesseis esculturas de parede vermelho-sangue, sendo que algumas são rostos derretidos e outras parecem órgãos genitais nunca vistos. Seu título ‘Come On Daughter, Save Me’ se liga uma frase materna frequente, na sua infância.

Goodman (2019) informa que a mãe de Davis era uma mulher negra, crioula, lésbica e separatista de 45 anos, que dormiu com seu pai - de 20 anos - uma única vez num concerto de Ray Charles nos anos 1960. Ela nasceu intersexo e sua mãe não se conformou com o desejo dos médicos de escolher entre os sexos. ‘Eu tô tão feliz que quando eu nasci, ela me permitiu ser ambos. Isso me deixou com uma genitália muito estranha, que tem também contribuído para o fato de que minha arte e a maneira que eu penso sejam tão diferentes. Meu pai [] e minha mãe nunca foram casados. Ela era vinte anos mais velha que ele. Minha mãe era lésbica e só engravidou, quando ficou muito bêbada’. Ela cresceu com a palavra masculino na certidão de nascimento, mas com sua mãe e quatro irmãs chamando-a por pronomes femininos. Além disso, ela foi inscrita em um programa para crianças bem dotadas, que lhe apresentou arte e cultura e ela fez cursos sobre escrever peças e fazer filmes na Universidade da California de Los Angeles e na Universidade do Sul da California. De artista outsider, ela se tornou aclamada pela arte estabelecida e tem discursado em Yale, Harvard e Universidade de New York.

‘Minha casa era um coven de bruxas druidas wiccanianas’, na qual sua identidade de filha era afirmada. ‘Estou tão ligada à minha mãe. Toda a minha carreira como artista e minhas artes visuais estão basicamente copiando minha mãe. Minha mãe não se considerava artista, ela apenas fazia várias coisas. Olhando para trás, pras coisas que ela fez, eram instalações, montagens []. Minha mãe fazia brinquedos de objetos usados e de lixo, experimentando com moda e usando roupas de baixo como roupas do dia a dia. Venho de uma linhagem matriarcal, com minha mãe e minha tia gerando apenas filhas mulheres da terra prometida; essa tradição ainda está se fortalecendo com minha sobrinha e suas filhas. Nada sai do meu ventre, então sou mãe orientando jovens. [] como me recuso a me envolver romanticamente com alguém, é para onde vão minhas principais energias. Agora que sou uma porta-voz mais velha, eu me esquivei ao manter minha independência e não me deixar desviar pela tirania do romance cansado’ (Dunham, 2015).

Nos anos 80, ela desenvolveu múltiplas personas e identidades incongruentes. Ela adotou muitas personas drag - de Graciela Grejalva, uma estrela pop latina não sexualizada até Clarence, um supremacista branco enamorado de uma trabalhadora do sexo negra - para reinventar construtos sociais dominantes. Ela desejava Clarence -caricatura do desejo ilícito que existe, apesar e por causa do racismo. Esta crítica política a tornou musa de escritores e críticos queer. Referindo-se a si como drag queen, hermafrodita e repulsiva sexual, suas performances criticam os contextos em que ela é indesejável. ‘Não me encaixo na sociedade dominante, mas também não me encaixo na cultura alternativa. Eu sempre fui muito gay para os punks e muito punk para os gays. Eu sou uma ameaça social. Nos aeroportos, pessoas trans são muito mais revistadas do que pessoas cis: o pênis de uma mulher trans ou o tórax de um homem trans são registrados como anomalias’. Por isso, ela está satisfeita com seu lugar como estranha ao mundo da arte institucional e da cultura. Muñoz descreveu seu trabalho como arrasto terrorista - vigilância de pessoas devido às suas identidades de gênero (Dunham, 2015).

Smith (2020) pergunta: Sua nova exposição The Wicked Pavilion é um estranho híbrido de biblioteca, fantasias sexuais e lembranças pessoais. De onde veio a ideia?

‘Sou intersexo, nasci com genitália feminina e masculina, então sou uma estranha criatura híbrida. Sou meio alemão, meio judeu, meu pai mexicano e minha mãe, crioula francesa’. ‘Eu queria reimaginar as bibliotecas da minha infância, que não eram exatamente acolhedoras para uma pessoa negra. [] Mandei fazer as vitrines rosa. Na verdade, essa instalação é a mais rosa de todas, virou uma espécie de vagina dentata. As masculinidades tóxicas têm seu falo arrancado’ [].

A última sala da exposição, mostra uma cama girando com um pênis gigante em cima.

‘Bem, meu quarto atual é muito parecido com o último cômodo []. E a minha cama é assim mesmo, durmo numa cama de solteiro, minúscula, porque não tenho amante, a minha sexualidade é um pouco como a de um pré-adolescente, de uma pré-adolescente. Sou muito infantil em muitos aspectos: tenho minha caminha minúscula, minhas bonecas e meus bichinhos de pelúcia ao meu redor - as únicas coisas que dormem comigo! Posso rir de mim mesma e de todos os meus desgostos. É por isso que sempre me refiro a mim mesma como uma espécie de pária sexual. Sobrevivi a AIDS, porque não estava envolvida com ninguém - ninguém fazia sexo comigo. Tudo bem, nem todo mundo foi feito para ter parceria com alguém e ter uma vida sexual emocionante’.

Sendo de Los Angeles e vinda da cena punk queercore, você passou pelos mesmos problemas de racismo e discriminação em Berlim?

‘Bem, essas coisas nunca desaparecem. Para mim, tudo se resume à minha mãe [] que acabou em Los Angeles. Na época, era uma das cidades mais racistas do mundo []. Minha mãe teve que enfrentar muitas coisas []. Ela se uniu com meu pai [] e então eu vim: nascida do piche primordial dos poços de alcatrão de La Brea!’ ‘Sou convidada por faculdades e escolas de arte para ensinar e fazer seminários e adoro meus alunos, sou muito generosa com eles, porque nunca terei meus próprios filhos - não neste útero! Então meus alunos se tornam meus filhos substitutivos’.

Discussão

Em face do pensamento dos autores e das entrevistas das drags, cumpre compreender as facetas de sua identidade queer. As facetas significam que as entrevistas oferecem representações separadas e restritas de sua identidade queer. Em contrapartida, as sessões de análise revelam inúmeras representações, a corrente associativa entre elas, sua ligação com a história de vida do paciente, o reaparecimento de algumas representações nas sessões e a mudança das representações e afetos na diacronia temporal.

No tocante às quatro drags com seus desejos, seus bloqueios, suas aprendizagens, suas negociações com seu eu, suas relações sociais e as relações entre seu eu e suas personagens, Ferreira (2020) pontua que a vida adulta se torna o palco no qual é possível ocupar espaços de poder, para colocar em prática desejos e curiosidades, que remontam à infância. São ressignificados momentos e renegociadas posições, sentidos e visões de mundo. As normas de gênero são contestadas desde cedo, cada um à sua maneira. Contudo, apenas na vida adulta as pessoas tem autonomia para colocar em prática seus desejos e curiosidades. Butler (2003) considera que o corpo, o sexo e o gênero são matrizes criadas a partir de forças discursivas, que se intitulam portadoras da verdade. Por outro lado, o corpo drag evidencia a falência de discursos compostos por verdades falidas. Nesse cenário, a drag queen constitui uma potência social de desmascaramento dessas pretensas verdades, com polos de existência móveis, fluídos e não-rígidos.

No discurso de Vaginal, ser solitária se opõe a ser sociável e ser extrovertida. Ademais, apesar de ela ser prolífica e ser produtiva, ela expõe ser insatisfeita e, ainda, ser independente evita ser tiranizada pelo romance cansado. Ser infantil e ser solitária no plano sexual se associam a ser desgostosa, ser pária sexual e sem uma vida sexual emocionante. Ser nascida do piche primordial dos poços de alcatrão remete a ela ser oriunda de seus pais, assimilados ao piche. Mais especificamente, ela e suas obras são associadas ao piche - feio e malcheiroso, mas valorizado e importante no mercado (Almeida, 2022).

Na comparação entre a instalação mais rosa da exposição e seu quarto, este aparece como ‘uma espécie de vagina dentata, [no qual] as masculinidades tóxicas têm seu falo arrancado’. Quanto a isso, a expressão vagina dentata significa vagina com dentes, sendo que várias culturas têm lendas sobre essas mulheres, envolvendo os perigos do sexo com mulheres desconhecidas. Esse mito constitui um tema interessante para artistas e escritores e expressa a ameaça de castração na leitura freudiana. Disso emerge uma cadeia de representações associadas entre si: ser hermafrodita - ser estéril- ser mãe- ser generosa com os alunos-filhos substitutivos e ser devoradora do falo tóxico. Seu conflito entre desejar um namorado e ser malsucedida e ser um pária sexual parece se basear em sua forte identificação com sua mãe (Almeida, 2022).

Considerações finais

Dado que a imensa diversidade das formas humanas de ser tem se feito presentes ao longo da história, este momento histórico-cultural tem garantido um espaço de maior respeito e aceitação para as drags. Infelizmente, ainda é em suas famílias de origem que as pessoas drag sofrem grande preconceito e estigmatização, visando à manutenção do modelo tradicional de ser homem e de ser mulher. Muito embora os preconceitos e os estigmas - quanto à sexualidade e aos modos de se vestir não convencionais - atinjam as drags para além de suas famílias, essas formas atemporais de identidade têm tido, paulatinamente, seu devido lugar no mundo. Por fim, o respeito às diferenças humanas efetivamente traduz o nível de desenvolvimento emocional da civilização humana.

Referências

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 26/12/2023
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