A honra no mundo contemporâneo

Introdução

Este trabalho visa investigar alguns aspectos da honra no mundo contemporâneo - considerando-se diferentes fontes teóricas. Para tanto, parte-se da etimologia da palavra, somada à sua definição, que comporta diversas facetas. Para trabalhá-las, contribuições da história, da antropologia, da sociologia e da psicanálise são acrescentadas às informações iniciais. A próxima seção centra-se em recortes de situações do cotidiano e do discurso das pessoas - analisados com base na escuta psicanalítica.

Sob o enfoque etimológico, a honra tem origem na palavra latina honrare: tratar com consideração e crédito. Refere-se à posição de destaque da pessoa em um grupo, trabalho, comunidade; característica ligada a castidade/pureza; pessoa com qualidades virtuosas. Seus sinônimos são: castidade, pureza, honradez, dignidade e seus antônimos são: demérito, opróbrio e desmerecimento (Psicanálise clínica, 2019).

A honra é um princípio de comportamento humano baseado em valores como bondade, honestidade, dignidade, valentia. Dessa forma, quando a pessoa age de forma esperada pela sociedade, ela conquista esse status. Contudo, não são ações só em favor de si mesmo que a qualificam como honrada, mas também como ela age em favor dos outros, de modo admirável. Prestar honras é a ação de homenagear alguém que teve um comportamento valoroso, uma forma de demonstrar respeito (Significados, 2021).

A honra designa um aspecto íntimo do sujeito que o orienta na vida, de forma que sua perda desmerece sua própria vida e, ainda, nomeia o sentimento de valor conquistado junto aos demais. Por outro lado, inclui a reputação que se constrói com base em seus atos e qualidades. Para algumas pessoas, a vida baseada na honra muda o sentido da vida e da morte. Assim, a morte pela honra é a morte em nome de certo valor, que ultrapassa a vida e constitui uma espécie de triunfo sobre a morte biológica (Bogochvol, 2022).

A honra consoante a literatura e a história

Na história da humanidade, há relatos de disputas pela honra na Ilíada e na Odisseia de Homero. Na Ilíada, Zeus está preocupado com seu culto e honra - não com a justiça. A sociedade descrita por Homero a configura como uma cultura da vergonha, dado que o maior bem de seu herói é o prazer da consideração pública - não o prazer de uma consciência tranquila. A maior força moral do herói homérico é o respeito pela opinião alheia - não o receio de Deus. Séculos depois, entre os celtas, nos grandes banquetes as melhores porções de carne eram dadas aos homens mais valentes, com maior distinção nas batalhas. As disputas sobre quem os merecia eram resolvidos com duelos até a morte, envolvendo questões de honra. Além disso, a honra também está presente nas histórias da cavalaria (Remedi, 2011).

Ainda que a honra pareça ser um assunto demodé no caso das personalidades públicas, ela está presente nos vários sistemas simbólicos. A historiografia estuda a questão da honra, incluindo as diferenças dos códigos de honra conforme o gênero, os papéis sexuais, as estratégias de reparação ou de encobrimento da desonra, a negociação matrimonial, os conflitos violentos em defesa da honra, os ritos e os simbolismos das disputas de honra. Os papéis femininos exigiam uma moral sexual adequada para manter a honra familiar, incluindo guardar a virgindade, a fidelidade e a castidade. As virtudes masculinas incluíam práticas relacionadas com lealdade, valentia, coragem e controle das mulheres, sob sua responsabilidade (Remedi, 2011).

Baroja (1971) acrescenta que a honra descende de três matrizes culturais: o mundo clássico, o mundo bárbaro e o cristianismo. Na época clássica, havia a ênfase na comunidade dos cidadãos, enquanto na Idade Média destaca-se a comunidade de fiéis. A concepção de honra variou historicamente, sendo alvo de disputas entre as classes sociais e os grupos religiosos. Nesse contexto, entrou em cena a honra do sangue, mediante a noção de sangue impuro ou maculado dos não-cristãos.

Ainda nessa perspectiva histórica, a honra foi associada à aristocracia e à nobreza nos antigos regimes aristocráticos do século XV até o século XVIII. Nessas sociedades da corte, a honra era propriedade da nobreza e os nobres eram fidalgos, por definição e por transmissão hereditária – sendo superiores aos plebeus. Quando a sociedade se tornou mais complexa, os critérios de atribuição da honra ou nobreza às pessoas ficaram mais sofisticados. Então, a nobreza era atribuída a aquele que comprovava sua excelência nas armas e no saber. O valor pessoal possibilitou a renovação da ideia de nobreza, alcançada por méritos pessoais (Febvre, 1998).

A honra segundo a sociologia e a antropologia

Sob o lume sociológico, Machado (2006) pontua que a honra constitui o cerne de um conjunto de relações hierárquicas e recíprocas, a partir das quais as identidades são construídas. A honra se associa a núcleos simbólicos importantes: gênero, família, política, religião. Ela consiste no valor que a família atribui a si mesma e que lhe é atribuído por outras famílias.

A honra da família abarca a complementaridade entre a honra de gênero e a honra da descendência. A honra dos ancestrais passa aos descendentes, que podem desonrá-los. A honra de um homem deriva da honra de seu pai/família de origem.

O homem, ao condensar o valor externo da família, depende do valor interno da família, concentrado na mãe-esposa. Assim, a desonra da mulher ocorre quando ela rompe os valores de virgindade e fidelidade. Estes valores na ordem do privado referem-se ao seu comportamento com o homem e centram-se na dimensão mais íntima da ordem privada sacralizada: a sexualidade. Em contrapartida, a honra masculina está centrada na intersecção do domínio privado com o público; seu dever de chefe da família compreende prover a casa através do trabalho e deter a capacidade de decisão e de comando. Assim, o comportamento do homem pode desonrá-lo e à mulher, quando ele deixa de trabalhar, bebe ou se acovarda.

Com seu aporte antropológico, Benedict (2019) examinou a honra e a vergonha na sociedade japonesa, com base no crisântemo - que significa beleza, leveza, paz - e na espada - que evoca guerra, ferocidade e força bruta. Esses símbolos representam dois extremos desse povo: amável e feroz. Na cultura japonesa, a honra impera sobre os clãs familiares e seus componentes. A cultura da vergonha tem a ver com a honra intrínseca ao povo japonês, de molde que a pessoa age de acordo com a lei estabelecida pela família e pela sociedade. Se ela infringe essas regras, ela é punida, pois seu clã a afasta de seu convívio e a trata com desonra. A cultura da vergonha salienta a vigilância implacável dos atos individuais pela coletividade, configurando uma reação à crítica dos demais. O japonês teme o julgamento da sociedade e supervaloriza a autodisciplina e a perfeição. Por isso, não obter êxito em uma empreitada pode levá-lo ao suicídio. Na guerra, a honra ligava-se à luta até a morte e a não rendição ao adversário. Por outro lado, na cultura ocidental da culpa, a pessoa a sente com relação a um ato, sem sintonia com sua autoimagem. Ela confessa o ato cometido para um padre ou para si, prometendo não mais cometê-lo; assim, sua culpa é dissolvida - sentimento passageiro e individual, que prescinde da crítica alheia para ser vivenciado. A cultura de culpa assegura a retidão do comportamento pela ideia de pecado.

Complementando essas ideias, a honra constitui um nexo entre os ideais da sociedade e a sua reprodução no indivíduo. A honra como atributo individual é o valor que a pessoa tem para si mesma e para a sociedade, mediante a conformação a certas condutas - articuladas a orgulho. A honra com relação às solidariedades sociais envolve o grupo, cuja honra coletiva está relacionada à honra de cada membro. Da família à nação, a pessoa é investida da honra do grupo e vice-versa.

A vergonha e a honra evocam a preocupação com a reputação e a pressão exercida pela opinião pública, ao passo que a falta de vergonha se equipara à desonra. No plano sexual, para o homem, o mais importante é a precedência e a busca das relações exteriores - associadas à honra. À mulher cabe a pureza sexual - associada à vergonha. A sociedade mediterrânea tende a associar honra masculina com pureza sexual feminina. O centro da honra da família e do grupo está no comportamento da mulher (Pitt-Rivers, 1971).

Posteriormente, Peristiany e Pitt-Rivers (1992) informam que a honra representa a consciência moral e a reputação ou precedência - ligada à virtude do nascimento, poder, riqueza, santidade, prestígio. Ela está ligada à aprovação ou à reprovação social, revelando-se nas instituições e juízos de valor tradicionais de cada cultura. Os diferentes contextos sociais e temporais moldam o conceito de honra. O par honra/vergonha faz parte das regras de conduta ou de regulamentos sociais, comuns a todas as sociedades.

Faz-se necessário, ainda, lembrar que a ‘cultura de honra’ descreveu a operação da máfia na Sicília, a violência na Irlanda rural do século XIX e os homicídios de retaliação cometidos pelas gangues de bairros pobres. Esses eventos ocorrem em contextos de competição por recursos - incluindo ser o último a cometer um homicídio de retaliação numa vendetta - e de vácuo de poder do estado numa região. Nessas condições, o prestígio é tragicamente perdido quando os desafios são deixados sem resposta - que se torna violenta. O exemplo mais famoso de uma cultura ocidental de honra é o sul dos Estados Unidos, marcado por disputas violentas (Sadolsky, 2021).

A honra no plano da psicanalise

As contribuições dos próximos autores ponteiam a passagem do âmbito cultural e coletivo para o subjetivo e individual, segundo a psicanálise.

Vertzman (2005) pontua a íntima correlação entre a honra e a vergonha, nas culturas em que a vergonha ocupa posição ética privilegiada - posição do sujeito diante do outro. A vergonha detém papel relevante na cultura ocidental, promovendo a coesão social mediante a distinção entre bem e mal, justo e injusto, virtude e vício. Ela participa na formação da imagem narcísica e a coloca em contato com o meio social. A vergonha e a honra desempenham uma função ética fundamental do ponto de vista psíquico e social. Na contemporaneidade, a vergonha desatrelou-se do ideal de honra e uniu-se ao ideal de performance pessoal, de forma que déficits na atividade profissional, no desempenho sexual, na capacidade de consumo e na possibilidade de expandir laços sociais causam muita vergonha.

Verztman (2014) discute ainda os impasses vividos pelo sujeito tímido na sua relação com o olhar. Ele fica paralisado diante do paradoxo de ser supervisível ou de ser invisível, de ser voyeurista ou exibicionista diante do outro, de ser invadido ou de ser completamente opaco a seu olhar - sentimento de insuficiência narcísica. Em função de fatores da cultura contemporânea - esvaziamento de predicados subjetivos relacionados a ideais coletivos e dificuldade de lidar com o desejo do outro - o olhar é a base da avaliação de si mesmo e do outro. A vergonha é vivida como embaraço, humilhação ou transparência psíquica. Ele deseja ser reconhecido como objeto de investimento do outro, porém teme não possuir os predicados que esse outro, supostamente, deseja que ele tivesse. Logo, ele nem quer ser visto nem deixar de ser visto.

O paradoxo é o cerne desse sujeito tímido e envergonhado.

Bilenky (2012) aponta que a vergonha regula os laços sociais em culturas, que não posicionam o indivíduo como valor supremo. Nelas, a vergonha está ligada a ideais e valores relacionados à honra, de modo que o sujeito valoriza o pertencimento a seu povo e busca estar à altura de seus ideais. Na clínica contemporânea, a vergonha está dissociada da honra. O sofrimento do sujeito envergonhado refere-se à sua imagem e aparência diante do outro. A vergonha acompanha sua sensação de insuficiência e inadequação diante de um ideal, personalizado na figura do outro, partilhado pelo grupo.

Em contraposição à vergonha, o orgulho é a emoção associada a ser bem sucedido. Subjacente a ele, assumir a responsabilidade pelo próprio sucesso, encoraja comportamentos condizentes com padrões sociais de valor e mérito. O orgulho surge a partir da avaliação positiva do eu, de grande satisfação consigo mesmo por uma realização, uma conquista (Lewis, 1992).

Aguinis (1985) enfoca os aspectos patológicos da honra, numa clave em que a defusão pulsional e o masoquismo moral são chaves para entender sua patologia. Ela funciona repressivamente, com ódio a vida e suas expressões mais francas. Em nome da honra se obedecem ou se ignoram certas pulsões. A honra se enlaça com a consciência moral e seus fundamentos inconscientes. Em quase todos os dicionários, a honra é a honestidade e o recato das mulheres. Porém, essa definição brinda o plano de clivagem, pois seu caráter monolítico se fratura e evidencia sua base sexual: na mulher, a honra se refere à castidade e no homem, remete à coragem física, moral, intelectual e cívica.

Dada a correlação entre coragem-virilidade-honra, os duelos eram uma demonstração de virilidade-honra, ocorrendo no ‘campo de honra’. Na atualidade, os duelos tem perdido valor, mas continuam vigentes em personalidades rígidas ou sexualmente reprimidas. Essa prática envolve a arbitrariedade do resultado - sujeito à destreza no uso das armas e nunca ao patrimônio da verdade ou a arbitragem da justiça. A pulsão de morte e a defusão pulsional convertem em escravo, aquele que deseja viver e em amo, aquele que não teme a morte, pois já se sente morto. Os códigos de honra são tanto mais exigentes, quanto mais a sociedade é machista: forte desprezo à mulher e aliança entre varões, que exercem domínio sobre o conjunto social. Portanto, o machismo constitui una perversão tanática.

Nas sociedades machistas- autoritárias - ditatoriais, a relação entre pai e filho está coartada. O amor entre eles é reprimido precocemente, por medo de que sua exteriorização desenfreie os impulsos homossexuais, que estimulam a aliança entre varões. A aliança homossexual masculina inconsciente denominada ‘sociedade de homens’ se sustenta no terror da denegação: não há desonra mais intolerável do que não ser considerado suficientemente macho.

A honra e a dignidade no mundo contemporâneo

Conforme Taylor (1994), a modernidade ensejou a transformação da noção de honra em dignidade. Nas sociedades aristocráticas, a honra estava ligada às desigualdades estruturais entre nobres e plebeus, de modo que para que alguns a tivessem era preciso que outros carecessem dela. Portanto, a noção de honra era indissociável da ideia de desigualdade. Com a implosão do Antigo Regime, a honra, marco das distinções entre os estratos sociais, foi substituída pela noção de dignidade com um sentido universal e igualitário. Sendo assim, as hierarquias sociais e as distinções entre os estratos sociais foram derrubadas.

Em face dessas mudanças, Berger (2015) discute a obsolescência do conceito de honra e sua perda de sentido na sociedade moderna, junto com a noção de dignidade. No mundo contemporâneo, a honra ocupa o mesmo lugar que a castidade, detendo um status ultrapassado nessa Weltanschauung. A idade moderna presenciou o declínio da honra, o surgimento de novas moralidades, um novo humanismo e a atenção para com a dignidade e os direitos indivíduais. A honra e a dignidade ponteiam o self e a sociedade, evocando o indivíduo em suas relações com os demais. Sua perda gera consequências de longo alcance para o self. A honra implica que a identidade está ligada a papéis institucionais. O conceito moderno de dignidade implica que a identidade independe de papéis institucionais. No campo de dignidade, a história seria a sucessão de mistificações, das quais o indivíduo deve libertar-se para alcançar a autenticidade.

A honra no cotidiano contemporâneo

Esse panorama acerca da honra em diferentes situações e contextos histórico-culturais serve de base para se refletir sobre ela na vida contemporânea. Trata-se de situações bastante diferenciadas entre si, cujo denominador comum é a menção da honra dirigida ao outro, por um participante.

Numa competição esportiva de remo, o vencedor fala da honra de competir ao lado de seu grande ídolo e de tirar maior nota que ele, nessa ocasião. Desde criança, o vencedor acompanhou a trajetória de sucesso e superação de seu ídolo, com o qual passou a cultivar uma relação próxima, à medida que se tornou esportista do remo.

Certo funcionário fala da honra de ser convidado para trabalhar com um empresário de grande destaque no país. A honra envolve o fato de ele ser valorizado pelo empresário, sendo escolhido para ficar à frente do escritório, que representa sua empresa em outro país.

Um homem - com dificuldades econômicas - competitivo com os colegas deseja muito ser reconhecido por seu trabalho. Nessa medida, bajula as pessoas consolidadas na profissão e desvaloriza seus colegas - de menor valor em sua escala de importância social. Assim, ele se diz honrado ao ser convidado, para uma palestra, por um profissional com certo destaque em sua área. Esse homem competitivo havia se oferecido para ler os trabalhos do profissional, mas se esquece de sua oferta, provavelmente, por já ter sido convidado para o evento importante.

A 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo reuniu jornalistas, livrarias, editoras, distribuidoras de livros, atividades culturais variadas, escritores reconhecidos e outros desejosos de reconhecimento. No site, consta que professores, profissionais do livro, crianças menores de doze anos e adultos maiores de sessenta não pagam entrada. Apesar disso, um escritor anônimo alega que não pode participar da bienal, por falta de dinheiro e de reconhecimento público. Porém, ‘quando um jovem na rua me perguntou se eu era o escritor de um livro que ele queria comprar, eu me senti muito honrado. Ser reconhecido como escritor na rua foi muito gratificante!’

‘Eu não poderia deixar de prestar a nossa homenagem ao grande amigo Jô Soares. Porque, sem o Jô, o Brasil fica mais triste. []. Eu tive a honra de conhecer e conviver com esse jornalista e humorista tão talentoso e querido de todos nós. Hoje, o dia amanheceu sem graça. Vá em paz meu amigo!’ Ana Maria Braga.

Duas psicólogas de abordagens diferentes se respeitam e se admiram, tendo várias características em comum: muito amorosas, muito inteligentes, muito cultas e ótimas profissionais. A psicóloga-escritora pede a outra que leia dois textos seus e veja se eles estão bem interligados, se são coerentes e claros para o leitor e, ainda se um dialoga com o outro, de maneira lógica. Agradece muito à colega por lê-los. A psicóloga-leitora diz que vai lê-los com o maior prazer, agradece muito à colega por compartilhá-los com ela e diz que se sente muito honrada pelo pedido da colega, a quem ela muito valoriza.

Discussão

Na primeira situação, há uma competição no plano da realidade que, em geral, mobiliza o desejo de sobrepujar o outro, de forma agressiva, humilhando-o e desvalorizando-o. Porém, no plano psíquico, o vencedor destaca a honra de competir ao lado de seu grande ídolo. A honra tem como foco a valorização e a admiração do ídolo, sem que o vencedor precise diminuir o valor do ídolo, para aumentar seu valor. Em termos de comparação, o ídolo - perdedor, nessa prova - tem uma longa trajetória de vitórias, ao passo que o vencedor vivencia sua primeira vitória - início de sua trajetória. Nessa relação, sua capacidade de valorizar e admirar o ídolo convivem com sua capacidade de se valorizar e se admirar, competindo de igual para igual, de forma justa.

Na segunda ocasião, um profissional - com menor valor na hierarquia da empresa - valoriza e admira o empresário-líder e exalta a honra de trabalhar mais proximamente dele, à medida que ele/profissional será o representante da empresa em outro país. Então, impera uma espécie de comunidade afetiva em que trabalhar com o objeto muito valorizado e admirado amplia seu valor como sujeito, que participa dessa empresa-comunidade. Nessa ocasião, não há quaisquer indícios de competição, em termos de quem tem maior ou menor valor.

No terceiro relato, apesar de o profissional aspirante dizer para o profissional de destaque que ele se sente honrado pelo convite para a palestra, ele o desvaloriza junto aos colegas do mesmo nível hierárquico, igualmente desvalorizados por ele. Nesse caso, a honra de trabalhar com o profissional de destaque é mera retórica, ratificada pelo fato de que sua oferta de ler seus trabalhos não se consolida, depois que ele conseguiu participar da palestra. Sua competitividade agressiva configura-se redutiva e seu ganho revela-se pontual, regidos pela lógica do superior-inferior e pela incapacidade de valorização e admiração genuínas do objeto.

Na quarta circunstância, ainda que o site explicite que profissionais do livro não pagam a entrada na Bienal, o escritor diz que não participou do evento por falta de dinheiro e de reconhecimento público. Contudo, ser valorizado e ser reconhecido por um leitor faz com que ele se sinta muito honrado. Novamente, uma hierarquia de valor e de reconhecimento do eu pelo outro entra em questão. Cabe lembrar que, para a criança, o amor, o valor e o reconhecimento advêm de seus pais e do outro, tão somente. Todavia, o adulto amadurecido se torna seu próprio centro de amor, valor e reconhecimento de si. Nesse caso, não fica claro se o escritor conseguiu superar sua dependência emocional do outro, para centrar a si mesmo como fonte principal de amor, valor e reconhecimento.

No quinto evento, a apresentadora se dirige aos estúdios da emissora para prestar uma homenagem pública ao ídolo - reconhecido publicamente como ótimo humorista. Sua menção ao fato de ele ser um grande amigo parece engrandecida por ela, visto que a convivência entre eles ocorria no espaço de trabalho, sem que fossem amigos no nível pessoal. Contudo, também fica evidente a capacidade dela de valorizar, admirar e reconhecer a grandeza dele, numa comunidade afetiva - em que não há competição, desvalorização ou qualquer emoção menos nobre quanto ao ídolo.

No sexto caso, a psicóloga-leitora tem a grandeza e a delicadeza de alma de valorizar e admirar a psicóloga-escritora, dizendo-se honrada ao ler seu trabalho. Por sua vez, a psicóloga-escritora tem humildade ao submeter seu trabalho à avaliação da outra. Com isso, sinalizam que a comparação entre elas não dá margem à competição envolvendo ideias de superior-inferior, melhor-pior e tampouco afetos como ódio, inveja e desprezo.

Aplicando-se as considerações de Vertzman (2005) a esses extratos do cotidiano, a vergonha não mais se associa a uma ética privilegiada - posição do sujeito diante do outro. Na atualidade, a vergonha uniu-se aos ideais de performance pessoal, marcadamente para evitar déficits na atividade profissional. A apreciação desses extratos a partir de novas reflexões de Verztman (2014) revela que os sujeitos que se sentem honrados não são tímidos, tampouco tem qualquer sentimento de insuficiência narcísica. Como na cultura contemporânea o olhar é a base da avaliação de si e do outro, o sujeito imbuído de honra deseja ser valorizado e admirado pelo objeto admirado, ao deter os predicados que ele demanda para a realização de certa tarefa.

Reiterando esse enfoque, Bilenky (2012) pontua que, no avesso da vergonha, o orgulho imbrica-se à imagem do sujeito diante do outro. Ao que parece, no sujeito que se sente honrado, o orgulho de si acompanha sua sensação de suficiência narcísica e de adequação diante de um ideal de competência e sucesso, personalizado na figura do objeto. Noutra leitura, o orgulho de si participa da formação da imagem narcísica em contato com o meio social (Lewis, 1992). Ademais, os relatos evidenciam a superação da antiga noção de que as virtudes masculinas abrangiam valentia, coragem e controle das mulheres (Remedi, 2011).

Nesses recortes do cotidiano, sobressai o orgulho enquanto emoção associada à percepção de ser bem sucedido. Subjacente a ele, assumir a responsabilidade pelo próprio sucesso, encoraja comportamentos condizentes com padrões sociais de valor e mérito. O orgulho surge a partir da avaliação positiva do eu, de grande satisfação consigo mesmo por uma realização, uma conquista (Lewis, 1992).

Considerações finais

Como sobejamente sabido em psicanalise, a idealização do objeto confunde-se com sua persecutoriedade. Em outras palavras, a idealização do objeto corresponde à desvalorização do sujeito. Desvalorizado pelos objetos parentais na infância, perpetua a vergonha, o desprezo e a desvalorização de si ao longo do tempo, e, assim, idealiza/supervaloriza o objeto idealizado em sua vida adulta. A distância narcísica entre eles é vivenciada como intransponível e alçada ao tempo infinito, definindo um sujeito de calibre patológico. A competição movida pelo ódio ao objeto idealizado impede a realização de seu desejo no mundo composto por adversários e rivais.

Diferenciando-se da idealização do objeto, a admiração e a honra entrelaçam-se a amor por si e pelo objeto, enquanto suficiência narcísica que impulsiona o sujeito a atingir realizações e conquistas obtidas pelo objeto admirado. A distância narcísica entre sujeito e objeto admirado - em termos de amor, valor, reconhecimento e mobilização de talentos para realizar seu desejo - é minimizada. Nessa medida, o orgulho de si, a honra e a admiração do objeto compõem o estofo do sujeito de veio saudável. Com o transcorrer do tempo, sua dedicação e persistência favorecem a realização de seu desejo mais recôndito. Posto isso, a vivência da honra mescla-se a amor, admiração e pujança do desejo em termos de sua efetivação no mundo junto a seus pares.

Referências

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 04/10/2023
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