Dar e receber: fluxo ou bloqueio do desejo
Uma das coisas que Eros faz é apagar a distinção
entre dar e receber.
Quem contabiliza crédito e débito, não ama.
C. S. Lewis
Introdução
O intuito desse estudo é refletir acerca do intercâmbio entre o dar e o receber em sua relação com o desejo do sujeito.
Numa leitura psicanalítica, falhas parentais vividas pela criança nesse processo fazem com que a realização do desejo do adulto sofra inibições. Para pensar essa questão, inicia-se com conceitos da antropologia, da psicologia e da psicologia organizacional. Juntam-se a elas, os conceitos de Klein (2006), Bion (2006), Balint (1993) e Winnicott (1994), psicanalistas que enriquecem a reflexão sobre o tema. Hipóteses investigativas da autora - desejo e sistema representacional - participam do arcabouço psicanalítico desse estudo.
Juntamente com a teoria, a vida cotidiana constitui o solo de prospecção desse fenômeno longínquo na historia humana. O recurso a recortes do cotidiano - que retratam essas trocas - visa dar corpo vivencial a essa discussão. Para estudá-los, trabalha-se com a clínica extensa e a pesquisa em psicanálise, que dialogam entre si.
Herrmann (2005) propõe que a clínica extensa se refere à aplicação do método psicanalítico a outros domínios para além do consultório, incluindo o hospital, a clínica universitária e as práticas voltadas à população menos favorecida. Ela abrange a psicanálise da cultura e da sociedade, sua relação com a literatura e as artes, bem como sua integração com o reino das ciências. Essa clínica nomeia o movimento pelo qual se estende o método psicanalítico para o mundo e para as produções humanas.
Figueiredo e Minerbo (2006) consideram que a pesquisa com o método psicanalítico permite interpretar fenômenos do universo simbólico humano: fenômenos psíquicos, socioculturais e institucionais contemplados fora da situação analítica.
Dar e receber - ideias iniciais
Em se pensando o intercâmbio entre dar e receber, trata-se de uma relação assimétrica entre doador e receptor, abrangendo uma hierarquia entre pessoas de diferentes gerações, idades, cargos, níveis de poder socioeconômico, gêneros e etnias. Essas trocas se situam numa temporalidade horizontal de influências entre pessoas vivas numa dada época e, ainda, numa temporalidade vertical de influências de pessoas mortas sobre as vivas, na família. Déficits na sintonia entre o desejo do doador e do receptor - quando falta o reconhecimento da singularidade do receptor como pessoa, incluindo seu desejo, seus gostos e seus interesses - tendem a gerar a subvalorização da ‘cortesia’ do doador. Desse modo, conflitos na esfera da reciprocidade entre doador e receptor são muito comuns.
A dificuldade de apreciar o objeto (i)material ofertado - em sua dimensão profunda - gera expressões interessantes em diferentes idiomas. Take for granted significa pressupor, tomar como certo, achar normal, não dar o devido valor. Prendre pour acquis denota achar algo natural, subestimar algo, dar como certo, tomar como garantido. Dar por sentado equivale a presumir, supor, tomar como certo. Dare per scontato tem como tradução presumir, supor, tomar como certo, tomar como garantido.
Logo, em quatro culturas diferentes, o fenômeno psíquico-cultural de avaliar a regalia recebida como insuficiente, inadequada, feia ou desprezível fica evidente.
Dar e receber em antropologia
A troca se aplica ao movimento de intenção recíproca entre duas partes e define a relação mútua reversível entre dois sujeitos (Encyclopedia Universalis, 1984).
Mauss (2008) postula que as sociedades primitivas mantêm obrigações de prestações recíprocas, entre famílias e comunidades. Ao realizar uma prestação, o grupo doador ocupa momentaneamente uma posição superior em relação ao donatário, cumprindo a primeira obrigação de dádiva e estabelecendo uma dívida. Visando inverter ou restabelecer a hierarquia entre os grupos, o donatário deve oferecer uma contraprestação superior ou equivalente a que recebeu, cumprindo a obrigação de retribuir. Nessas prestações primitivas, misturam-se riquezas materiais e espirituais, ao passo que nas sociedades modernas, o mundo material e espiritual são bem separados. A moral da dádiva-troca associa um valor ético à transação econômica, diferenciando-se da troca mercantil motivada pelo interesse. No sistema dádiva-contradádiva, reina a nobreza, a honra e o prestigio do doador como elementos da troca social e econômica. Nas oferendas mútuas, trocam-se amabilidades, banquetes, ritos, mulheres, crianças, danças, festas - acima de bens e riquezas, úteis economicamente. As dádivas e os presentes são regulados por três obrigações: dar, receber e retribuir. Cada obrigação cria um laço espiritual entre os atores da dádiva. A retribuição da dádiva se deve à força intrínseca a coisa dada: vínculo de almas, associado ao prestígio do doador, de maneira inalienável. Como o mundo material e o espiritual se misturam, o objeto dado carrega algo do doador. As coisas são dadas e retribuídas, pois se dão e se retribuem cortesias. As pessoas se dão ao dar, pois devem - elas e seus bens - aos outros.
Dar e receber em psicologia
Boszormenyi-Nagy (2013) acentua a importância do equilíbrio entre dar e receber. Essencial nas relações, uma ética existencial implícita exige justiça e equilíbrio ao longo das gerações. O equilíbrio das contas psíquicas de mérito e dívida demanda o equilíbrio entre os benefícios recebidos e dados. Na contabilização de mérito e dívida, a pessoa dá algo, adquire mérito no sistema e o direito de receber algo, enquanto a dívida não compensada gera culpa, transmitida aos descendentes. Essa tecelagem inclui os conflitos de lealdade inconscientes, que operam na família. Os votos de lealdade à família de origem incluem leis paradoxais. O mártir, que não permite que os parentes elaborem sua culpa, detém um controle maior que o mandão exigente e vociferante. Ademais, o filho delinquente ou rebelde pode ser o membro mais leal da família. A escolha de um parceiro pode servir para satisfazer o desejo de amor de uma avó que perdeu o namorado na guerra ou para compensar a humilhação de uma tia, rejeitada por suas condições econômicas modestas. Uma profissão pode prestar-se a realizar o desejo de um antepassado, que não pode exercê-la. Fazem referência ao dever inconsciente de reparar e restabelecer a justiça na família, antes da própria realização pessoal.
Nessa esteira, Hellinger (2003) propõe que ordens ou leis universais regulam os sistemas, definindo as relações humanas nas várias culturas. Elas precisam ser reconhecidas e aceitas para se encontrar harmonia e paz, como pessoa e como sistema. A ordem precede o amor que pode fluir, ao se adaptar a ela. Uma ordem fundamental do amor é dar e tomar na mesma proporção, para haver equilíbrio na relação. Tomar implica uma postura ativa e um compromisso, quando a pessoa efetivamente se apropria do que recebe. Uma pessoa dá algo para a outra, que a toma e dá algo em troca, gerando equilíbrio. Quem dá, tem o direito de reivindicar e quem toma, tem uma obrigação, fica em dívida com quem deu, até dar algo em troca e a relação se equilibrar. O amor na relação aumenta, quando quem recebe dá um pouco mais do que tomou e se sente grato. Assim, forma-se uma cadeia crescente de troca, amor e compromisso. Na família, os filhos tomam dos pais a vida, tendo o que dar, podendo tomar mais e ter abundância na vida. Agradecer é uma ótima forma de compensação entre dar e tomar, que reconhece o que foi dado. O reconhecimento e o amor podem valer mais do que algo dado em troca.
No âmbito da administração da carreira, Grant (2014) examina os motivos que levam algumas pessoas ao topo do sucesso. Nas interações profissionais, podemos atuar como tomadores, compensadores ou doadores. O tomador busca extrair o máximo possível dos outros, não se doa e não pensa no grupo. Ele encara a vida como um jogo, no qual para ele ganhar, o outro tem que perder. Esse estilo de ser pode levá-lo a ganhos, mas não se sustenta no longo prazo, pois ele é excluído pelos demais. Quando ele detém poder, não conta integralmente com o grupo e acaba estagnado. O compensador equilibra o dar e o receber, busca doar na medida em que toma, com base no ‘toma lá-dá cá’. Ele retribui favores, doa dinheiro, tempo e conhecimentos, mas ajuda o outro de forma estratégica, visando cobrar o favor no futuro. Ele se empenha em promover trocas equilibradas, atende seus interesses, mas agrega valor à comunidade. O doador também atende seus interesses, mas ele se doa mais do que recebe. Promove pessoas, indica colegas e gera situações, nas quais todos ganham. Ele é disponível, busca fazer a diferença e tratar bem as pessoas. A retribuição de favores e a reciprocidade são centrais nas relações. Quando se recebe algo, fica-se com a sensação de dívida e se cria um laço emocional e moral com o outro. Essa abordagem traz muitos frutos, abre portas e potencializa a vida do doador e do receptor. Quanto mais a pessoa se torna disponível e agrega valor a vida do outro, suas redes e suas oportunidades se ampliam. Nas varias carreiras, as pessoas melhor sucedidas são doadoras, mas elas podem ser pior sucedidas, às vezes. Os doadores bem-sucedidos se diferenciam em networking, colaboração, influência, negociação e liderança.
Conchetto (2020) pontua que há três formas de se lidar com o dar e receber: ser grato pelo que recebeu; diminuir e atacar a pessoa que deu muito, para que uma se sinta tão inferior quanto a outra e deixar a pessoa que muito deu, traindo-a ou abandonando-a.
Dar e receber em psicanálise
Adentrando no reino das contribuições psicanalíticas, cabe considerar que as primeiras vivências de dar e receber remontam à relação do bebê com a mãe.
A gratidão e inveja têm como primeiro objeto o seio - que contem tudo que o bebê deseja: alimento e amor. A inveja é a expressão sádico-oral-anal de impulsos destrutivos, diante da privação da gratificação pelo seio. Envolve raiva do objeto que possui e desfruta de conteúdos desejáveis, gerando fantasias no bebê de estragá-lo e destruí-lo - desejando seu infortúnio. Ela surge em face das dificuldades do bebê de construir o objeto bom - com o sentido de bondade e generosidade materna. A voracidade traduz uma ânsia insaciável, que visa sugar, devorar e destruir tudo que o objeto pode dar. O bebê pode fantasiar um seio inexaurível e o leite como dom inatingível. Desse modo, sua inveja, sua voracidade e seus impulsos destrutivos aumentam. Em contrapartida, a gratificação pelo seio está ligada à capacidade de amar, à gratidão, à confiança no objeto bom e à generosidade. A integração do objeto bom e mau se expressa na capacidade de amar (Klein, 2006).
Bion (2004) entende que as primeiras experiências do bebê derivam de suas impressões sensoriais: os elementos beta. Quando ele sente um mal-estar somático difuso e indefinido - vivido como medo de morrer - esses elementos beta dependem da digestão materna, para adquirir estatuto mental. Os elementos beta são evacuados sobre a mãe, sob a forma de identificações projetivas. Ela pode devolvê-los ao bebê, depurados e transformados - constituindo a forma primitiva de comunicação entre eles. A rêverie é um estado da mente materna aberto à recepção de quaisquer objetos ou produtos vindos das identificações projetivas do bebê - boas ou más, calmas ou terroríficas. Mediante a função alfa, ela permite que ele reintrojete o material evacuado, de modo que os elementos alfa propiciem-lhe sonhar, armazenar memórias e pensar. Bion (2004) ainda aborda a divisão do eu entre provisão material e provisão emocional. No domínio da pulsão agressiva/destrutiva, o impulso do bebê em busca de provisões pode ser cindido, ocorrendo a divisão entre satisfações materiais e psíquicas. A internalização dos elementos brutos da experiência aumenta a necessidade de comodidade material em detrimento da psíquica, que se converte em voracidade e aumenta a destrutividade.
Winnicott (1994) considera que as sensações fisiológicas do bebê precisam ser elaboradas para ganharem estatuto psíquico e ser apropriadas pelo self - incluindo os impulsos agressivos/destrutivos e as experiências de prazer/desprazer. A experiência de alimentação pode envolver a relação enriquecedora com o seio materno ou com a mãe. A mãe suficientemente boa oferece o seio diante da urgência instintiva do bebê, que cria a ilusão de tê-lo criado, no momento em que dele necessitava. No holding ou sustentação materna do bebê, ela atua como ego-auxiliar para ele manter a sensação de continuar existindo. O holding materno é uma condição sine qua non para a formação de seu psiquismo, à medida que suas experiências são integradas.
Balint (1993) descreve o desenvolvimento das relações objetais primárias em termos de amor ou libido - não de ódio ou destrutividade. O amor primário se baseia na interdependência biológica da unidade dual mãe- bebê. Quando os impulsos de desejo são adequadamente satisfeitos, há bem-estar no bebê. O desenvolvimento do ódio é secundário, fruto da frustração/separação do entorno. O ódio perpetua sua dependência do amor primário. Para liberá-lo da fixação no ódio é essencial a cooperação do entorno.
A origem da falha básica é a discrepância entre as necessidades biopsicológicas do bebê e o cuidado material e afetivo do objeto. Quando essa relação é desarmônica, sua libido retorna ao ego. Na falha básica, há o investimento libidinal em duas estruturas. Na ocnofilia, o investimento adere aos objetos, seguros e tranquilizadores, ao passo que os espaços entre eles são ameaçadores e terríveis. Há o superinvestimento das relações objetais. No filobatismo, as expansões sem objeto, seguras e amistosas, são investidas, pois os objetos são perigosos e traiçoeiros. Há o superinvestimento das funções do ego, para manter-se com pouco auxílio dos objetos.
Dar e receber em sua relação com o desejo e o sistema das representações
Igualmente, no universo da psicanálise, duas hipóteses investigativas da autora ajudam a adensar a reflexão acerca do dar e do receber.
O desejo apresenta-se como uma ampla gama de representações e de afetos, que promove movimentos psíquicos do sujeito em direção aos seus objetos de satisfação, visando se realizar no mundo. Em contrapartida, os bloqueios na satisfação do desejo do adulto derivam de sua fixação em representações e afetos, que limitam sua realização no mundo. Pois, grande parte do desejo do sujeito é atravessada pelo material psíquico de sua família, que forma seu sistema representacional.
O sistema das representações pode ser concebido como um aparato psíquico do sujeito, com a propriedade de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Nele são produzidas as representações do sujeito, de seus objetos e do mundo. Sua formação imbrica-se aos vínculos primários da criança com os pais, nele prevalecendo os aspectos inconscientes. Em sua vida adulta, seu desejo se apresenta como fluxo ou como paralisia, com base no material psíquico herdado, pela criança, de seus pais. Ele atua na formação de seu eu e na construção do desejo do sujeito (Almeida, 2003, 2005, 2016).
Dar e receber no cotidiano
No tocante ao levantamento do material, situações casuais do cotidiano foram obtidas de maneira aleatória, a partir da observação e da escuta de eventos do dia a dia. Nesse relato, as expressões dos interlocutores são destacadas por meio de aspas simples.
Um senhor idoso e bem vestido entra num supermercado, andando devagar e algumas manchas vermelho-escuras em suas pernas parecem sinalizar diabetes. Num setor de produtos refrigerados, um funcionário simpático e prestativo procura, com cuidado, um produto pedido pelo senhor. Contudo, ele não o acha. O senhor diz: ‘não quero mais, não vou gastar saliva porque saliva é cara’. Não agradece ao funcionário. Um homem de setenta e cinco anos depende completamente do genro para ter acesso à comida, à moradia, à assistência médica, às roupas, entre outros. Em meio a isso, ele bebe e fuma descontroladamente. Preocupado com sua saúde, o genro lhe diz: ‘o senhor precisa controlar a bebida e o cigarro’. Ele retruca: ‘tô bem melhor que você, que precisa de remédio psiquiátrico’.
Numa família disfuncional, um filho passa por um surto psicótico com vivências paranoicas aterrorizadoras e desorganizadoras. Em meio ao caos familiar, a mãe - desde sempre agressiva, briguenta e descontrolada - faz uma colcha para outra filha e passa muito calor, ao tricotá-la durante longo tempo. Ao visitar essa filha, ela percebe que a colcha está rasgada, suja e foi transformada em tapete para o cachorro. Outra garota viveu um momento extremamente vulnerável em sua vida mental. Recém-descoberta sua esquizofrenia, os remédios demoraram muito para fazer efeito e ela sofreu muito com fortes alucinações e delírios. Uma conhecida da família a ouviu, inúmeras vezes e por muito tempo, nesses episódios psicóticos. Atualmente, a garota está bem melhor do que naquela época. Em suas comunicações atuais, ela diz para a conhecida: ‘já precisei muito de você e você não me ajudou, agora não preciso mais’, ‘já quis tanto que você fizesse parte da minha vida e agora não quero mais’. Ela responde: ‘eu já te ouvi muitas vezes e por longo tempo, mas nunca foi o suficiente’.
Uma paciente se esmera em cuidados com sua aparência, desde hidratação e apliques para o cabelo até a compra de roupas, sapatos e acessórios caros. A despeito de afirmar para outras pessoas que a terapeuta atual é excelente, reclama com ela sobre o preço da sessão e ameaça parar. Porém, com a terapeuta anterior, ela não sentiu qualquer melhora em seu sofrimento psíquico. A atual terapeuta cobra tão somente R$ R$ 50 reais a mais do que a terapeuta anterior, quanto ao valor mensal das sessões. Certa paciente - com muitas dificuldades financeiras - consegue que sua analista diminua o preço das sessões. Contudo, ela vive falando de um analista renomado, bastante idealizado por ela, com o qual ela gostaria de fazer análise. Ela não consegue perceber que seus preços são muito maiores do que o de sua analista. Portanto, não valoriza a concessão bondosa e generosa da analista, que muito se empenhou em sua formação, fazendo análise com analistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise - igualmente renomados e caros.
Na pós-graduação, uma professora se empenha ao trabalhar com uma orientanda, valorizando-a, elogiando-a e reservando para ela mais horas do que efetivamente recebe, dado o tempo reduzido de que a orientanda dispõe para defender sua tese. Nessa defesa, a orientadora a elogia e a prestigia em público, sendo que a tese recebe nota dez. Contudo, nenhum elogio, agradecimento, presente ou felicitação de Natal e Ano Novo é oferecido pela orientanda para a orientadora.
Oriundo do Nordeste, um rapaz de 25 anos vai morar com uma mulher de 42 anos e seus cinco filhos. Seu salário de R$ 1.200 reais banca as despesas da família, visto que os pais das crianças não contribuem para sua manutenção. Além disso, ele compra um tanquinho para ela e adquire uma bicicleta. Quando da separação do casal, ela fica com a bicicleta e o tanquinho e acrescenta: ‘você vai sair sem nada’. Além disso, seu carro fica com os ex- cunhados, ligados ao tráfico de drogas.
Uma senhora de meia idade depende da renda mensal concedida pelo pai para manter a vida de alto padrão, de que ela gosta e desfruta. Seu pai conseguiu amealhar um patrimônio considerável, que garante o ótimo nível de vida da família. Recentemente, ele aumentou a provisão mensal da filha, enquanto adiantamento da herança. Ainda assim, ao conviver com amigas, que desfrutam de altíssimo padrão de vida, ela pede um aumento da renda mensal e o pai nega. Quando outra amiga lhe diz que ela não tem preocupações financeiras, ela responde que vive se apertando daqui e dali, pois as amigas fazem reuniões refinadas, que incluem alimentos e sobremesas caras. Reclama que ficou com R$ 150 reais para passar o feriado de quatro dias, que R$ 70 reais foram para a sobremesa e acrescenta: ‘com todo o dinheiro que meu pai tem...’ Outra senhora - que ostenta uma vida de alto padrão nas redes sociais - está numa cafeteria badalada e cara, queixando-se das relações com sua família. Nessa tarde, uma chuva torrencial inunda a cafeteria. Apesar do descaso do dono que - ciente da reiterada inundação do local - nada fez para sanar o problema, a funcionária continua limpando, passando o rodo e enxugando. Ainda assim, ela avisa a senhora que seu vestido longo ia molhar. Porém, a senhora se preocupa em não estragar o vestido caro, não percebe a gentileza da garota, irrita-se, sai logo do local e não agradece a ela.
Discussão
Essas situações casuais do cotidiano fazem parte da clínica extensa e permitem uma pesquisa com o método psicanalítico. A esse respeito, Herrmann (2005) propõe que a clínica extensa se refere à aplicação do método psicanalítico a domínios para além do consultório, sendo estendido para o mundo e para as produções humanas. Figueiredo e Minerbo (2006) pontuam que a pesquisa com o método psicanalítico interpreta fenômenos psíquicos, socioculturais e institucionais do universo simbólico humano, contemplados fora da situação analítica.
No plano antropológico, as obrigações de dar, receber e retribuir se aliam à nobreza, à honra e ao prestigio do doador em contraposição à dívida do donatário (Mauss, 2008). Assim, a obrigação como regra cultural exterior é internalizada, de sorte que o fluxo do desejo de dar, receber e retribuir sofre bloqueios. Parece bloquear a possível espontaneidade, generosidade e naturalidade do desejo de dar de volta.
No campo psicológico, Boszormenyi-Nagy (2013) enfatiza a necessidade de justiça e equilíbrio no intercâmbio entre dar e receber. Porém, dar demarca mérito, ao passo que receber implica demérito. Ademais, receber sem dar algo em troca gera dívida e culpa, propagadas para os descendentes. Portanto, o ato de dar detém maior valor que o ato de receber algo nas culturas ditas primitivas.
Na cultura contemporânea, a dinâmica do dar e receber no cotidiano, por vezes, põe em evidência o desencontro impactante entre as pessoas.
Na primeira situação cotidiana, a despeito da passagem do tempo, da suposta sabedoria que a acompanharia e da possível condição financeira privilegiada do idoso, a maneira como ele lida com o funcionário revela falta de empatia e insensibilidade ante sua boa vontade, incluindo sua fala de que não quer gastar saliva porque saliva é cara. Aventa-se a hipótese de que as questões financeiras tomaram vulto em sua criação em detrimento do cuidado com as emocionais, de sorte que dizer obrigado é caro demais, devido à sua pobreza emocional. Na segunda situação, o total desamparo do idoso e sua grande dependência do genro, para viver com qualidade, não gera amor, respeito e gratidão por ele. Talvez por acreditar que o genro o está diminuindo, ele o diminui, sem ter qualquer noção de que a necessidade de remédios psiquiátricos tem origem genética e ambiental. Igualmente, a possível anestesia do idoso contra o sofrimento psíquico na infância resvala para sua aridez emocional e sua insensibilidade quanto aos benefícios recebidos do genro. Quanto a esses idosos, os conceitos de Bion (2004) acerca da divisão do eu entre provisão material e provisão emocional, entre satisfações materiais e psíquicas se fazem valer. A internalização dos elementos brutos da experiência aumenta a necessidade de comodidade material em detrimento da psíquica, que se converte em voracidade e aumenta a destrutividade.
No episodio da mãe que dá um cobertor para a filha, a longa história de desencontro entre elas se junta ao fato de ela não perguntar o que a garota deseja e não saber sua cor preferida. Esses fatores favorecem que ela transforme o cobertor em tapete para o cachorro, do qual ela realmente gosta. A situação de intenso sofrimento psíquico da garota esquizofrênica a leva à insaciabilidade, à insatisfação eterna e à ingratidão, dificultando lembrar a duração e a frequência com que a amiga da família a ouviu. Na primeira paciente, seus conflitos com os pais e com o marido, a pressão financeira do marido e sua total dependência financeira dele fazem com que ela reclame do preço da terapia com a terapeuta, apesar da qualidade de seu trabalho ser melhor e o preço da sessão ser menor do que da terapeuta anterior. A segunda paciente não consegue dimensionar a generosidade da analista, que diminuiu o preço das sessões, apesar de ter feito análise com analistas caros. A paciente idealiza o analista famoso, a quem ela não conhece e tampouco sabe se ele diminuiria o preço de suas sessões para ela. Subjacente a essas vivências, faz-se valer o postulado de Klein (2006) acerca de a voracidade traduzir uma ânsia insaciável, que visa sugar, devorar e destruir o que o objeto pode dar. O bebê pode fantasiar um seio inexaurível e o leite como dom inatingível.
No caso da orientanda, ela não tem qualquer consciência do nível de dedicação e de abnegação da orientadora. Sendo assim, ela não lhe agradece, de nenhuma forma. No relato sobre o rapaz, sua doação, ao cuidar da família da namorada, não é apreendida por ela. Na separação, além de ela tomar para si os objetos/propriedades dele, acrescenta que ele vai sair sem nada. Sua aridez emocional se alia ao fato de que seus irmãos violentos podem defendê-la de qualquer desejo de justiça do rapaz.
Por sua vez, a primeira senhora nunca fica satisfeita com os bens materiais recebidos de seu pai, pois suas demandas emocionais nunca foram e não são supridos por ele. Ela acredita que ele deveria dar-lhe mais dinheiro do que lhe dá. A segunda senhora é incapaz de notar a atenção e o cuidado da funcionária para com ela, em meio ao grande trabalho que ela estava tendo com a chuva. A senhora fica irritada com o alagamento, foca na preservação do vestido caro e sequer agradece a funcionária.
Esses eventos adquirem sentido à luz das reflexões de Winnicott (1994). Segundo ele, as sensações fisiológicas do bebê precisam ser elaboradas para serem apropriadas pelo self - incluindo os impulsos agressivos/destrutivos e as experiências de prazer/desprazer. Ao que parece, nenhuma das pessoas referidas elaborou seus impulsos agressivos/destrutivos e suas experiências de prazer/desprazer. Tampouco, elas puderam experimentar uma relação enriquecedora com o seio materno e com a mãe. Igualmente, faz sentido a proposição de Balint (1993) acerca da discrepância entre as necessidades biopsicológicas do bebê e o cuidado material e afetivo do objeto dar origem à falha básica. Contudo, não é possível afirmar que se trata de ocnofilia ou filobatismo, com base nesses dez relatos.
Ainda sob o prisma psicanalítico, representações como ser insatisfeito, ser insensível, ser irresponsável afetivamente, ser retentivo, ser ingrato, ser agressivo e ser destrutivo, acompanhadas de ódio no sistema das representações, parecem alicerçar o desejo desses sujeitos em suas relações com os demais. Considerando-se que o fluxo do desejo, voltado para sua realização no mundo, fundamenta-se em ser amado, ser amável, ser amoroso, ser empático, ser grato, ser generoso e ser responsável afetivamente, entre outras, esses sujeitos não conseguem realizá-lo em seus fundamentos mais originais e autênticos na vida adulta (Almeida, 2003, 2005, 2016).
As situações descritas destoam da proposta de Boszormenyi-Nagy (2013) quanto à importância do equilíbrio entre dar e receber. Essencial nas trocas, uma ética existencial implícita exige justiça e equilíbrio nas relações. O equilíbrio das contas psíquicas de mérito e dívida demanda o equilíbrio entre os benefícios recebidos e dados. Ademais, essas pessoas podem ser compreendidas como tomadoras e parecem fadadas ao fracasso (Grant, 2014). O tomador busca extrair o máximo possível dos outros, não se doa e não pensa no grupo. Ele encara a vida como um jogo, no qual para ele ganhar, o outro tem que perder. Esse estilo de ser pode levá-lo a alguns ganhos, mas não se sustenta no longo prazo, pois ele é excluído pelos demais.
Considerações finais
No cotidiano, é comum agradecer ao garçom que oferece uma bebida numa festa, à costureira que costura a roupa no prazo pedido, ao vendedor que traz o salgado, ao carteiro que traz o Sedex. Nesses eventos, trata-se de atos de superfície devido à ideia de obrigação subjacente ao dar e receber, à convenção social sobre o valor do obrigado nas relações de negócios, ao papel social de ser educado e à expectativa alheia quanto à imagem pública da pessoa. Contudo, há maior resistência a agradecer quando as relações abarcam a intimidade caótica entre doador e receptor; a arrogância do doador e a vulnerabilidade do receptor; a dependência do receptor quanto ao doador, em termos de sobrevivência pessoal, profissional e financeira; a vulnerabilidade do receptor em situações de emergência nas fronteiras entre saúde e doença, entre vida e morte. Em muitas delas, o receptor desvaloriza, humilha e denigre o médico, o enfermeiro, o psicólogo, o agente de saúde, o bombeiro. Em vez do agradecimento, imperam o ódio, a raiva, o desprezo, o sadismo e o cinismo do receptor, anteriormente traumatizado nas primeiras relações com os pais/doadores na família.
A problemática do dar e do receber infiltra-se nos conflitos precoces entre mãe e bebê, nos conflitos posteriores entre pais e filhos, na suposta doação do doador que humilha o receptor, na insaciabilidade do receptor e no uso de bens materiais pelo doador para camuflar seu vazio de amor e de carinho quanto ao receptor. Enreda-se à percepção das consequências da passagem do tempo, ao sofrimento com doenças típicas da idade avançada, à proximidade da morte, à percepção das diferenças sócio econômicas entre as pessoas, às benesses de fazer parte de uma classe social avantajada e às falhas na empatia para com o outro menos privilegiado, em virtude do foco distorcido e ampliado sobre os próprios problemas.
E, mais, esse processo psíquico e social pode ser observado em diferentes culturas, atravessando a historia da civilização humana. Tendo-se em vista que a formação de laços sociais e de vínculos afetivos - imbricados ao dar e receber - ocorre no bojo da família, faz-se imprescindível elaborá-los para que o sujeito se desenvolva no terreno do amor, da responsabilidade afetiva, da generosidade e da gratidão. Desse modo, seus desdobramentos nas relações sociais e trabalhistas se tornam mais saudáveis e benéficos para o sujeito e seus pares.
Referências
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Disponível em: https://lucasconchetto.com › dar-e-receber › 2020.
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Disponível em: http://ea.fflch.usp.br › obra › ensaio-sobre-dadiva › 2016.
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Figueiredo, L. C.; Minerbo, M. Pesquisa em Psicanálise: algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70), 2006.
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Mauss, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. São Paulo: Edições 70, 2008.
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