Ambição e ganância

‘Qualquer coisa que custe apenas

dinheiro é barata’.

J. Steinbeck

Introdução

Este capítulo visa entender a problemática da ganância, com base no diálogo entre psicanálise, psicologia e sociologia. De início, cabe diferenciar ambição e ganância - dois conceitos que, geralmente, são confundidos. Em seguida, a ganância é examinada no campo da literatura, da sociologia, da psicologia e da psicanálise. O desejo e o sistema das representações são convocados a contribuir nessa reflexão.

A ambição significa o desejo pessoal de conquistar coisas, melhorar de vida, progredir, se aperfeiçoar, se esforçar para a realização de um sonho e buscar a realização pessoal, ao passo que ganância remete ao desejo de ganhar sempre mais, ainda que a pessoa não precise ou não mereça o objeto/prêmio, visando à posse (Griswold, 2018).

Contribuições da sociologia e da psicologia acerca da ganância

Primeiramente, apresentam-se algumas ideias sociológicas a respeito de ganância, passando-se para ideias psicológicas a esse respeito.

Ganância é um desejo desenfreado por dinheiro e bens materiais, que gera comportamentos com consequências sociais. Sendo assim, a ganância não é simplesmente individual, mas social e sistêmica. A ganância social surge na forma da absoluta necessidade de dinheiro para sustentar seu modo de vida e em sua avaliação persistente, embora inconsciente, das pessoas e situações em termos monetários. A ganância social pode ser vista como um descuido de outros valores - harmonia social, relações pessoais livres do nexo monetário - e, nesse sentido, faz parte do capitalismo. Neste, muitos ricos exibem o alheamento que vem com a riqueza e estabelecem relações com base no binômio predador/presa (Griswold, 2018).

A essa abordagem social e global são articulados enfoques psicológicos, centrados na subjetividade.

A pessoa gananciosa quer tudo o que vê, especialmente, o que os outros têm, mesmo que não tenha nenhuma ligação com suas aptidões e gostos pessoais; faz o que for preciso para ter o que deseja, inclusive utilizando meios ilícitos ou desleais; não possui ética e age de forma maquiavélica; não se sente culpada pelo que faz para atingir seus objetivos; nunca está satisfeita com o que têm e sempre quer mais; acredita que pode comprar o que quiser: coisas ou pessoas; é extremamente desconfiada e sempre acha que há algum interesse por trás das atitudes dos outros; costuma ser solitária, pois sua ganância destrói as relações. Ela apresenta forte medo de não ter algo ou passar algum tipo de necessidade. Acredita que possa se completar com bens materiais. A cada bem adquirido, experimenta uma sensação de alívio, ainda que passageira. Assim, continua em um círculo vicioso de tentativas vãs de se tornar completa (Curcio, 2017).

A ganância é uma modalidade de adição do sujeito, que proporciona a gratificação de seu ego, com o intuito de ele se sentir bem consigo mesmo. Em sua perseguição da riqueza, sua paixão insaciável e avassaladora é ficar mais e mais rico. Sua perpétua produção de riqueza o protegeria dos subjacentes e pouco reconhecidos sentimentos de tristeza - depressão, ansiedade, culpa ou vergonha - que provém da profunda dúvida de não ser bom o suficiente. Excessivamente competitivo e agressivo, seu sucesso financeiro cada vez maior sustenta sua acalentada ilusão de que ele é vastamente superior - em termos econômicos - aos outros. Seus luxos - ‘minha Ferrari, meu iate, minha mansão´ - são sentidos como necessidades. Eles o fazem parecer bem - e aparência é muito importante para ele. Entretanto, seu desejo mais íntimo - desconhecido por ele - não é por riqueza, mas por amor, intimidade emocional, auto-aceitação, aceitação incondicional e relações ricas e satisfatórias (Seltzer, 2012).

Aportes da psicanálise acerca da ganância

Contribuições advindas da seara psicanalítica visam fornecer outras reflexões relativas ao desejo, à ambição e à ganância. Começa-se com os apontamentos do mestre no que tange ao dinheiro - objeto material-simbólico central na ganância.

Em 1905, Freud aponta que - no erotismo anal - as fezes equivalem a presentes e a dádivas. Quando esse erotismo se perde, é substituído por interesse pelo dinheiro. Em 1917, os impulsos de ódio - oriundos do erotismo anal - constituem o elo entre caráter anal, sadismo, controle, poder e dinheiro. Aborda, ainda, a relação entre dinheiro, sujeira e sexualidade na linguagem popular, bem como nos mitos, nos contos e nas superstições. Como produtos do inconsciente, os bebês, o pênis e as fezes - dádiva, dinheiro - constituem equivalências simbólicas, substituindo uns aos outros. Assim, o dinheiro está ligado à sexualidade, à autopreservação e a obtenção de poder.

O desejo e o sistema das representações quanto à ganância

O desejo e o sistema das representações constituem elementos a ser apreciados para entender a ganância.

O desejo - em sua constante busca de objetos - pode ser assimilado ao vazio. Pois, o desejo é sempre satisfeito de forma provisória, parcial e faltante - condições intrínsecas a ele. Disso resulta certo nível de insatisfação no sujeito, visto que o objeto mais ardentemente desejado - passado o encantamento inicial - deixa de ser maravilhoso, ao ser desfrutado ao longo do tempo. Sob essa perspectiva, o desejo pode ser considerado sob dois aspectos: saudável e patológico (Almeida, 2020).

Numa vertente saudável, o desejo mobiliza certo vazio interior que move o sujeito em direção ao outro e ao mundo. Nesse sentido, ele constitui um vazio que promove o saudável movimento psíquico do sujeito, para além de si mesmo. Este vazio recuperável pelo movimento do desejo remete ao seu vigor na psique, à sua força de realização no mundo e à criação de obras culturais. Numa vertente patológica, o desejo constitui um vazio angustiante, cuja atualização no presente esbarra nos conflitos do sujeito com seus objetos primários/pais no passado. Como vazio ‘irrecuperável’ pelo movimento saudável do desejo, a ganância irrompe sob a forma de urgência de satisfação e do desejo repetitivo por objetos ilusórios de satisfação. Após oferecerem uma satisfação provisória e fugaz ao sujeito, os objetos logo dão lugar à sensação de vazio. Esse vazio produz muito sofrimento psíquico no sujeito (Almeida, 2020).

No sistema das representações, o vazio emocional se faz acompanhar do vazio de representações como: ser amado, ser amável, ser valorizado, ser precioso, ser genuíno, ser solidário, ser empático, dentre outras. Em contraste com isso, ser milionário, ser superior, ser competitivo, ser invulnerável, ser inatingível, ser invejado e ser solitário podem imperar no sistema (Almeida, 2020).

A ganância na literatura

Nesta seção, o mundo da literatura fornece material para se mergulhar nos meandros da ganância. Destacam-se clássicos acerca do Natal, da literatura americana do século XX, da crítica social e uma parábola poética sobre as grandezas e as misérias do mundo: obras emblemáticas relativas ao tema. Resenhas acerca das obras objetivam fornecer um panorama com informações adicionais sobre elas: época e circunstâncias em elas foram engendradas, análise das personagens pelo autor da resenha, p.ex.

Desde os primórdios da psicanálise, Freud (1905) acentuou a importância da literatura para se entender as questões humanas. Assim sendo, as obras literárias e artísticas foram objeto de estudo ao longo de sua obra. Vale ressaltar que as obras relativas à ganância não foram analisadas por ele.

Um conto de Natal de Dickens (1843) relata a historia de Scrooge, um homem rabugento, rico, avarento, sem empatia e sem compaixão para com o outro, que odeia o Natal: um enorme desperdício de tempo e dinheiro, em sua opinião. Na véspera, enquanto todos se preparavam para a celebração, ele não via razão para tanta alegria. Em meio a isso, recebe a visita do fantasma do falecido sócio, cujo espírito não pode descansar em paz, por não ter sido bom nem generoso. Segundo ele, Scrooge receberá a visita de três fantasmas, que o levarão a uma viagem pelo presente, passado e futuro, para tentar salvá-lo. O espírito dos Natais Passados mostra sua adolescência e início da vida adulta, quando ele amava o Natal. Triste com as lembranças, ele enfia o chapéu na cabeça do espírito, oculta sua luz e ele desaparece. O espírito do Natal do Presente mostra-lhe as celebrações do presente, incluindo a humilde comemoração da família do empregado: muito feliz e unida, apesar de pobre. Ele pede que os homens tenham cuidado com a ignorância e a miséria. E vai-se embora. O espírito dos Natais Futuros mostra-lhe sua morte solitária, sem amigos. Após a visita, Scrooge amanhece renovado. Ama o espírito de Natal, é generoso com os que precisam, ajuda seu empregado e seus filhos. Celebra o Natal com grande entusiasmo.

Skyandstars (2022) pontua que Dickens ficou conhecido como o Pai do Natal, nos moldes atuais, com esse livro. Escrito no período da Revolução Industrial, ele tem um caráter reflexivo e crítico quanto à sociedade da época, sendo que os nomes dos personagens remetem às suas características cruciais. Aproxima-se de um conto de realismo mágico, no qual o real e o cotidiano cruzam com experiências sobrenaturais. Ressalta aspectos como solidariedade, harmonia e esperança, questionando o sistema capitalista, o consumismo exagerado, a falta de humanidade.

Em As asas da pomba de H. James (1902), Kate e Densher desejam se casar desesperadamente, mas tem pouco dinheiro. Ela é constantemente perturbada por problemas familiares. Conhece Milly, uma jovem extremamente rica, com uma doença incurável e apaixonada anteriormente por Densher. Numa festa de Milly, Kate diz a Densher que ele deve se casar com Milly, para herdar seu dinheiro e se casar com ela. Ele fica com Milly, que descobre o plano para ficarem com seu dinheiro, se desliga do mundo, seu estado de saúde piora e ela morre. Contudo, ela deixa muito dinheiro para ele, que se recusa a tocar nele. Densher propõe a Kate que se ela o escolher, eles ficam sem o dinheiro e que se ela escolher o dinheiro, eles terminam. O casal se separa com uma exclamação misteriosa de Kate: ‘Nós nunca mais seremos como antes’. De acordo com Monte (2013), Kate é a mentora do plano egoístico-perverso e piedoso-fraterno, ao decidir que Milly pode ser sacrificada ao seu futuro com Densher. Com seu maquiavelismo fraternal, ela é uma personagem ambígua e dupla: muito mais do que uma mera vilã. Milly/ a pomba, ao se oferecer para o sacrifício, mostra-se muito mais forte do que se supunha, pois depois da sua morte, separa o casal, que se amava. Os personagens, com seus deslizes morais e suas tortuosas atitudes, têm certa nobreza.

O grande Gatsby foi escrito por S. Fitzgerald em 1925. Nick Carraway torna-se amigo de Jay Gatsby, um milionário conhecido pelas festas animadas em sua mansão, frequentadas por grande parte da elite novaiorquina. A fortuna de Gatsby gera muitos rumores, pois ninguém conhece seu passado. Gatsby dava estas festas na esperança de que Daisy, seu antigo amor, fosse a uma delas. Milionários, Daisy e Tom tem uma vida de excessos materiais, destruindo pessoas - vistas como descartáveis. Assim, ‘eram descuidados, Tom e Daisy, esmagavam coisas e criaturas, protegiam-se por trás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração e deixavam os outros limparem a sujeira que haviam feito’ (p. 143). Essa indiferença prejudica todos ao seu redor, por sua falta de ética. Em meio a isso, Daisy e Gatsby tem um caso. Tom percebe o amor de Gatsby por ela e diz que ele é um gângster, que pratica atividades ilegais. Tom ordena que eles voltem para a casa juntos. Wilson - amigo de Tom - e sua mulher Myrtle - amante de Tom - discutem. Ela corre e é morta por Daisy, que dirigia o carro de Gatsby. Ele assume a culpa e Tom dá o nome de Gatsby para Wilson, que o mata. Nick busca pessoas para irem ao funeral e nenhum parceiro de negócios comparece. Foram ao funeral, Nick, o pai de Gatsby e Owl Eyes - admirador de sua grande biblioteca, numa festa de Gatsby. Daisy não liga para a mulher morta, escapa de qualquer consequência e volta para Tom. Sem conexão com as pessoas, Nick vai embora de Nova Iorque.

Segundo Wordpress (2020), Daisy é vazia, amoral e volúvel, além de profundamente egoísta. Gatsby não a reconhece como pessoa real e tem uma visão despersonalizada dela: obsessão lancinante com ela no passado. Porquanto, Gatsby foi um menino pobre que subiu na vida e se apaixonou de tal forma pela riqueza e pela sofisticação da riqueza, que as personificou em Daisy. Nesse background, a decadência de personagens materialistas e deslumbradas com seu poder esconde seu vazio interior.

A pérola de Steinbeck (1968) tem como personagens principais Kino, um índio mexicano, sua esposa Juana e seu filho Coyotito. Picado por um escorpião, Coyotito corre o risco de morrer. Considerado sub-raça pelo médico, Kino não consegue atendimento na cidade. Ele mergulha e encontra a pérola do mundo, a maior pérola jamais vista, para pagar o tratamento do filho. Os compradores não a compram por ser muito grande e oferecem uma ninharia por ela. Kino sofre uma tentativa de assalto e mata o assaltante. Ele foge para as montanhas e mata seus perseguidores. Ao voltar, Coyotito tinha morrido. Então, ele atirou a pérola ao mar, levando com ela os sonhos bons e maus que representava, pois ela lhe trouxera o mal e a tristeza. Egg (2012) relata que, nessa narrativa, Steinbeck traça um panorama da pobreza nos EUA, da exploração do pobre e da opressão secular do indígena, na década de 1940. Explicita as personificações da exploração capitalista sobre uma comunidade tradicional e primitiva, que vivia em comunhão com a terra, muito antes de o explorador chegar. O fio condutor da trama é a expectativa da emancipação financeira. Pois, no livro, prepondera a desesperança e o medo.

Discussão

Algumas questões relativas a essas obras articulam-se a tópicos desenvolvidos pelos autores nos três campos de investigação.

Em O Grande Gatsby, a ganância - em sua faceta de indiferença - favorece a destruição de coisas e pessoas - descartáveis, como as amantes de Tom. Em geral, a destruição do outro se entrelaça à autodestruição - visto que o ódio, igualmente, é dirigido ao próprio sujeito. E, mais, nesse livro e na vida, observa-se a ascensão e a decadência - financeira e psicológica - dos personagens gananciosos, em meio ao culto ao individualismo, ao desejo de visibilidade social, à corrupção dos valores e às consequências negativas do enriquecimento a qualquer custo. Aliás, o alheamento e a ingratidão dos milionários diante da morte de Gatsby, que os recebeu em suas festas, por tantas vezes; a insensibilidade de D. diante da morte de Myrtle e Gatsby e a falta de solidariedade do casal são associados à sujeira por Fitzgerald (1925). Logo, a relação entre dinheiro e sujeira - apontada por Freud (1917) - aparece nessa obra. Exceto em Nick, não há registro de crise emocional dos personagens, que os leve à busca de propósitos mais altos, de autorrealização e de relações genuínas entre as pessoas.

No livro, o poder monetário de Daisy o encanta tanto quanto ela. Sua paixão não se liga a traços de sua personalidade que o agradam, mas às suas grandiosas condições de vida. ‘Houve momentos, em que Daisy ficou muito aquém de seus sonhos [...] devido à intensidade de sua ilusão. Sua ilusão tinha-se projetado além dela’. ‘Ficara assombrado, porque nunca estivera em uma casa tão bela antes. O que dava àquela casa uma atmosfera intensa e mágica [...] era [...] que Daisy morava lá, a mansão era casual para ela. Havia um mistério delicioso naquela casa, [...] quartos de dormir mais lindos e mais frescos do que quaisquer outros [...] atividades alegres e radiantes [...] promessa de romances [...] lençóis em lavanda [...] perfume de cintilantes carros último modelo. Outra coisa que o excitava era [...] que tantos outros homens já haviam se apaixonado por ela. Isso servia para valorizá-la aos seus olhos’. E ‘sua voz está cheia de dinheiro’.

Com respeito à idealização de Daisy por Gatsby, fragmentos desse processo surgem na citação de sua riqueza, seu poder de atração, sua voz - associados à intensa ilusão, atmosfera mágica, mistério delicioso, atividades radiantes, promessa de romance, perfume de cintilantes carros. Aliás, radiantes e cintilantes podem ter ressonância com o brilho do ouro/glamour do dinheiro. Além disso, Nick e Gatsby apresentam aspectos semelhantes em suas vidas: foram pobres e lutaram na guerra. Nessa medida, o deslumbramento de Nick por Gatsby fundamenta-se em seu desejo de ser como ele. Seu deslumbramento/idealização de Gatsby demanda esconder a persecutoriedade desse personagem, revelada mediante a recusa de Nick de entrar em contato com informações sobre as origens de sua fortuna.

Em As asas da pomba, Kate é a mentora do plano egoístico-perverso e piedoso-fraterno, dado seu maquiavelismo fraternal. Essa menção de Monte (2013) pontua a ambivalência: a existência concomitante e conflitante de dois sentimentos com relação a uma pessoa. Freud (1913) aponta que a ambivalência é a ambiguidade nos sentimentos e nas ideias, incluindo a mescla de amor e ódio por uma pessoa. O sentimento de culpa manifesta a ambivalência entre amor/ódio, pois a raiva intensa de uma pessoa gera o desejo inconsciente de sua morte, em conflito com o carinho por ela. A ambivalência está presente no conceito de tabu, que remete à proibição de certo desejo. Mais evidente em Densher do que em Kate, esses processos favorecem que Milly/ a pomba abra suas asas depois de sua morte e separe o casal.

No que tange às contribuições da sociologia, a ganância está associada a fatores macrossistêmicos, dentre eles, o capitalismo desmedido. Este promove o descuido de valores como: harmonia social e relações pessoais livres da conexão monetária. No capitalismo, muitos ricos exibem o alheamento que vem com a riqueza e estabelecem relações com base no binômio predador/presa (Griswold, 2018). Essas ideias se alinham à indiferença, à falta de solidariedade e de ética para com os outros - em O Grande Gatsby. Igualmente, elas se alinham à historia dos pescadores de pérola em A pérola. Em particular, Kino enfrenta a ganância do médico, do padre, dos revendedores intermediários e dos milionários ávidos por pérolas. Sendo assim, ele vê na venda da grande pérola, o passaporte para sua emancipação financeira. Sua brecha de ganância envolve a busca de libertação de sua intensa opressão e da pungente falta de saída para sua vida. Por sua vez, As asas da pomba expõe aspectos mais brandos da ganância, em comparação com as anteriores. Nessas obras, o outro não é visto como sujeito/senhor de seu desejo e de sua vida, mas como objeto submetido à relação de dominação e submissão.

Do ponto de vista psicológico, a ganância constitui um tipo de adição ou de dependência do sujeito quanto aos objetos materiais. Assim, ele deseja ser muito superior aos demais, porém, esconde de si mesmo e dos outros, aspectos emocionais mal trabalhados. Sob esse prisma, a ganância esconde um desejo muito forte de ser amado e de amar o outro, estabelecendo intimidade emocional com ele. À medida que esse desejo é reprimido e negado, assoma sob a forma de tristeza, mas, principalmente, mediante a compulsão por dinheiro e coisas materiais (Seltzer,2012). Nessa perspectiva, os personagens de O Grande Gatsby são magistrais. Curcio (2017) adiciona que a pessoa gananciosa crê poder se completar com bens materiais. A cada bem adquirido, experimenta uma passageira sensação de alívio. Assim, continua em um círculo vicioso de tentativas vãs de se tornar completa. Novamente, os personagens de O Grande Gatsby oferecem exemplos contundentes disso - com exceção de Nick e Owl Eyes.

Sob o enfoque psicanalítico, segundo Freud (1917), os impulsos de ódio consistem no elo entre o caráter anal, o sadismo, o controle, o poder e o dinheiro. Aponta, ainda, a relação entre dinheiro, sujeira e sexualidade. Com relação a isso, Phillips (1988) considera que o dinheiro divide a pessoa, ao expô-la a conflitos: uma parte o deseja, mas outra parte deseja algo mais. Comparadas com o glamour da riqueza, as antigas alternativas - salvação pessoal, imortalidade, honra, amor ou justiça - parecem estranhas. Porquanto, o dinheiro se tornou o objeto universal de desejo. Ele se tornou um símbolo de tudo que se deseja e um meio para não se pensar sobre aquilo que se deseja. Ele esconde o que importa na vida e o que é necessário para ter uma vida que se ame. O desejo por dinheiro pode significar ressentimento com as frustrações nas relações, busca de autossuficiência e de segurança na vida.

Na condição de símbolo de poder, o dinheiro pode dissimular a falta inerente ao humano, ativar a onipotência narcísica e se converter em supostos falo e completude do sujeito. Na ganância, a compulsão por dinheiro e por objetos materiais favorece a competição, o domínio, a agressividade e o sadismo com relação aos outros. Todavia, o dinheiro pode ser usado de maneira saudável e madura pelas pessoas (Almeida, 2020).

A ganância pode ser contemplada enquanto vertente patológica do desejo. Neste sentido, como vazio ‘irrecuperável’ pelo movimento saudável do desejo, a ganância surge como urgência de satisfação e como desejo compulsivo e repetitivo por objetos ilusórios de satisfação. Após oferecerem uma satisfação passageira e fugaz ao sujeito, esses objetos logo dão lugar à sensação de vazio, mantendo o sofrimento psíquico (Almeida, 2020).

Ao que parece, Gatsby e seus conhecidos estão impregnados do vazio afetivo de suas infâncias e de sua ilusória compensação mediante o acúmulo de bens materiais. Também Scrooge e Kate percorrem caminhos próximos a isso, mas numa escala bem menor. Kino vive uma vida descrita como íntegra, na qual uma irrupção pontual de ganância surge ante a crueza da vida. Dessa forma, a ganância irrompe enquanto vertente patológica de seus desejos. Entretanto, Scrooge e Kino conseguem reverter essa modalidade nefasta de seu desejo.

No sistema das representações, o vazio emocional se faz acompanhar do vazio de representações como: ser amado, ser amável, ser valorizado, ser precioso, ser genuíno, ser solidário, ser empático. Por outro lado, ser milionário, ser superior, ser competitivo, ser invulnerável, ser inatingível, ser invejado e ser solitário tendem a imperar no sistema (Almeida, 2020)

Considerações finais

Dessa forma, as diferentes contribuições permitiram traçar um panorama amplo e obter uma visão integrada sobre ela, deveras presente na vida humana.

Retomando-se a diferenciação inicial entre ambição e ganância, a ambição se interliga à vertente saudável do desejo, que significa crescer, utilizar os próprios talentos para se desenvolver e realizar seu desejo no mundo, ao passo que a ganância pode ser articulada ao desejo em seu aspecto patológico, que envolve sofrimento psíquico ligado a vazios emocionais. Estes se formaram a partir da história de vida do sujeito, na qual ele se sentiu e se representou como: não-amado, desvalorizado, não importante, inferior, entre outras - junto a seus cuidadores iniciais. Esses conteúdos psíquicos são investidos por ódio, favorecendo sua agressividade, seu sadismo e sua indiferença para com os outros. À medida que esses conteúdos extremamente dolorosos são negados por ele, ele busca na materialidade suprir seu vazio emocional. Nesse caso, o sujeito tenta lidar com seu mundo interior mediante a aquisição compulsiva de objetos materiais. No entanto, esses objetos que se oferecem ao seu desejo - marcado por sofrimento - satisfazem-no temporariamente e novos objetos precisam ser buscados incessantemente, por ele.

Na verdade, ele teria que olhar para dentro de si e entender os processos subjacentes a esse vazio e a essa ganância, tomando consciência de seu eu. A transformação dessas experiências infantis dolorosas e carregadas de ódio em novas ideias investidas por amor é possibilitada por uma análise. Com isso, a ganância dá lugar à ambição e ao cuidado amoroso e responsável para consigo e com o outro.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 02/10/2023
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